No final de março o mundo da arte contemporânea se despediu de Richard Serra, um dos mais influentes artistas do século passado, após seu falecimento decorrente de uma pneumonia. Reconhecido mundialmente por imensas esculturas de aço pensadas para espaços de grande circulação, Serra deixa um legado incontornável para a cultura contemporânea.
Richard Serra nasceu em 1938, e cresceu no litoral de São Francisco, Califórnia. Em uma entrevista concedida para um livro de Hal Foster, o artista revela que durante sua infância desenhava tudo que estivesse ao redor e via a técnica como uma forma de ganhar a atenção e afeto dos pais.
Apesar da primeira paixão pelo desenho, Serra foi à Universidade da Califórnia fazer esportes, mas uma lesão nas costas no primeiro ano o levou a se transferir para Santa Bárbara, onde se formou em Literatura Inglesa. Foi após ser admitido no curso de Artes Plásticas em Yale que de fato a aproximação com as artes se deu, período da vida em que Serra ganhou uma bolsa para estudar em Paris.
Sua vivência na capital da França foi essencial para ampliação de seu repertório, e foi onde passou a ter mais interesse pela escultura através do ateliê de Brancusi reconstruído no Museu Nacional de Arte Moderna francês. Constantin Brancusi é considerado o pai da escultura moderna, e Serra revelou que a obra do artista romeno deu um clique em sua mente, o que o atraía diariamente para desenhá-la.
Na época de sua formação, Serra já buscava se distanciar ao máximo das técnicas de pintura – linguagem a princípio escolhida durante a graduação. Em 1966 o artista mudou-se da Europa para Nova York, já aberto a experimentar linguagens como o vídeo e a escultura com materiais industriais, situado em uma cena influenciada pelo minimalismo e o expressionismo abstrato.
Verb List, um trabalho de 1967 aponta a carga conceitual presente na produção de Serra. Em duas folhas de papel, o artista escreve uma série de verbos relacionados à ação humana sobre a matéria. “To open”, “to match”, “to mix”, “to erase”, entre outros, sintetizam o interesse do artista no processo – uma das chaves para entender sua poética.
Nesses últimos anos da década de 1960 o artista realizou uma série de trabalhos com chumbo, explorando a força da gravidade, e a relação da escultura com suas bases – como o chão, a parede, ou até mesmo a auto sustentação de suas várias partes.
No livro October Files (2000), Rosalind Krauss chama atenção para a obra One Ton Prop (House of Cards), de 1969, em que Serra mantém 4 placas de chumbo de pé através da reciprocidade de seus lados apoiados. Nessa época, o artista considerava diversas forças como peso e gravidade para entender o comportamento da matéria durante a concepção de suas obras. O processo era mais importante pois era baseado na experimentação, e deveria estar evidente aos espectadores enquanto essas obras fossem expostas.
A relação da escultura com o corpo humano se dá em variados aspectos, seja tendo-o como referência formal, ou mesmo considerando a experiência entre objeto e corpo. Na década de 1970, Serra passa a elaborar esculturas de grande escala com importância especial dada ao espaço ocupado pelo projeto. Ao projetar esculturas levando em conta as especificidades dos espaços, o artista buscava revelar potenciais de experiência ocultos nesses ambientes.
Em Circuit, de 1972, o artista inseriu quatro chapas de ferro de 2,4m de altura e 7,3m de comprimento cada em uma sala quadrangular, com sua extensão partindo das quinas em direção ao centro, deixando um pequeno espaço para circulação entre elas. Reconfigurando a sala, os espectadores só poderiam ter uma compreensão do espaço por completo a partir do ponto central. Com pouco espaço de circulação e campo de visão muito limitado, o artista desafiou os visitantes e suas capacidades psicológicas de leitura espacial, declaradamente uma intenção com seus projetos em grande escala.
Movimento e coreografia também são elementos marcantes no processo criativo de Serra ao pensar a espacialidade. Ao levar suas obras para espaços de grande circulação, como praças e jardins públicos, o artista elevou a discussão em torno das relações entre arte, sociedade, espaço público e privado. Para o artista, pensar o movimento dos corpos em contato com suas obras era uma tarefa constante, especialmente em obras de grande escala.
Tilted Arc, de 1981, é um dos trabalhos mais emblemáticos de Serra. Após passar por uma comissão pública, o artista planejou por dois anos uma obra site specific para a Federal Plaza, uma praça de Nova York. Cercada por prédios governamentais, a praça possuía grande circulação de funcionários públicos e de perfil corporativo.
O projeto final de Serra foi uma chapa de aço COR-TEN com 3,6m de altura e 36,5m de comprimento, com uma curvatura oposta ao padrão curvilíneo do piso da praça. A grande escultura foi instalada e causou grande impacto na paisagem da praça, bloqueando parte da vista da fonte e exigindo que os pedestres a contornassem, dependendo do percurso pretendido.
Sendo uma obra site specific, é compreendido que a obra só faria sentido instalada naquele espaço, sob aquelas condições. Todavia, diante da magnitude e repercussão do projeto, uma batalha judicial foi travada, pela qual algumas pessoas que trabalhavam ao redor exigiam a retirada da obra, o que acabou ocorrendo em 15 de março de 1989.
Retirar o espectador de sua postura passiva e contemplativa é um dos aspectos que chamam a atenção diante de propostas como Tilted Arc. Uma obra designada para o espaço público pode ser pensada em outros termos quando se fala em harmonia, convívio, estética, materialidade. Serra explorava os limites da escultura, da materialidade monumental, partindo de processos industriais que também levavam em consideração suas especificidades, como na produção de uma chapa de aço tão grande que só seu país teria tecnologia para tal feito.
Sempre levando em consideração o diálogo entre obra, espaço e arquitetura, público e circulação e propriedades dos materiais, a obra de Serra chegou a diversos lugares do mundo. Um exemplo é East-West/West-East, obra de 2014, comissionada para o deserto do Qatar, composta por 4 chapas de aço alinhadas e espaçadas em intervalos irregulares. Com difícil acesso, essa obra se diferencia de outras instaladas em lugares que fazem parte do cotidiano de muitas pessoas. Para acessá-la, é necessária uma viagem de carro a mais de quarenta milhas de Doha, capital do Qatar.
Em 2019 o Instituto Moreira Salles (IMS) inaugurou a primeira obra permanente de Richard Serra instalada em um espaço da América Latina. O público que acessa a sede paulistana do Instituto na Avenida Paulista se depara com a obra Echo, constituída de duas placas de aço de 18,6m de altura, pesando 70,5 toneladas cada uma. Desenvolvida para dialogar com a arquitetura do IMS, a altura e os eixos das placas em relação ao prédio foram pensados para provocar uma sensação de desequilíbrio no percurso dos visitantes.
Apesar do caráter monumental da obra de Serra chamar a atenção no primeiro contato, este não é principal o motivo de sua produção ter se tornado um marco na escultura e na arte contemporânea como um todo. O compromisso com a reflexão em torno da experiência e a pesquisa incessante a respeito dos materiais trabalhados, fizeram de Serra um mestre em seu ofício. Pensando a escultura através de suas relações físicas com as forças que constantemente atuam sobre a matéria, permitiram que o público também enxergasse a maneira como o corpo se relaciona com esses outros corpos e espaços. Entre a simplicidade e o monumental, existe um lugar cravado que Serra deixa na história da arte.
Referências:
Richard Serra / edited by Hal Foster with Gordon Hughes ; essays by Benjamin H.D.
Buchloh . . . [et al.].p. cm. — (October files). 2000. The MIT Press. Cambridge, Massachusetts. London, England.
Richard Serra and Hal Foster. Conversations about sculpture. 2018. Yale University Press New Haven and London.
Site do MoMa
Site do ArtForum
Tate Modern
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