“Retratistas do Morro”, em cartaz desde junho de 2023, apresenta o trabalho de dois fotógrafos da região do Aglomerado da Serra, em Minas Gerais, entre as décadas de 1960 e 1990. Com mais de 300 fotografias de João Mendes e Afonso Pimenta, a exposição dá continuidade ao projeto do curador, pesquisador e artista visual Guilherme Cunha, que tem como objetivo mapear imagens que retratam a vida nas comunidades brasileiras. Até 28 de janeiro, o público poderá visitar a mostra no Sesc Pinheiros e conhecer o que foi considerado como uma das produções mais relevantes do último ano.
João Mendes foi um dos primeiros fotógrafos profissionais de Aglomerado da Serra, uma das maiores favelas do país, localizada na cidade de Belo Horizonte. Em sua carreira, dedicou-se principalmente à produção de retratos em preto e branco, fotos 3×4 e postais. Afonso Pimenta, por sua vez, vivia em São Pedro do Suaçuí, no interior do estado, e mudou-se para a capital mineira em 1963, onde passou a morar com sua madrinha. Ainda na década de 60, na cidade grande, Afonso conheceu o ofício da fotografia e a produção de João, com quem passou a trabalhar como assistente em sua loja, a “Foto Mendes”.
A partir dessa aproximação, os dois artistas passaram a registrar, ano após ano, o cotidiano daquela comunidade. Enquanto João Mendes produzia retratos em cores ou em preto e branco, Afonso Pimenta começou a se interessar mais pelo registro de momentos íntimos daquelas pessoas – o interior de suas casas, as festas de aniversário, os bares e os bailes. Qualquer coisa era motivo para fazer uma foto, seja a compra de um eletrodoméstico, seja o nascimento de um bebê, seja uma confraternização.
Na exposição do Sesc Pinheiros, essas fotografias são divididas entre três grandes eixos: “Espaço das Becas”, que conta com dezenas de imagens de crianças em formaturas escolares; “Retratos”, com fotos domésticas ou de estúdio, na maioria das vezes em modelo 3×4, seguindo o padrão de fotos para documento; e “Bailes”, com registros das festas de black soul, grande sucesso na década de 1970. Além destes núcleos principais, estão presentes, ainda, imagens de casais apaixonados, noivos indo ou voltando da igreja, crianças brincando em suas casas, homens jogando sinuca em bares, DJs agitando festas, pessoas dançando e muito mais. Não só os sujeitos presentes nas cenas marcam as fotografias, como também os diversos elementos visuais da época – vitrolas, discos de samba, móveis, vestimentas, cosméticos, pôsteres e brinquedos infantis são alguns dos componentes que denotam o período e o local onde os registros foram feitos.
Em todas as imagens dos “Retratistas do Morro” é possível notar que existe, nos indivíduos fotografados, um certo sentimento de orgulho e pertencimento de estarem ali, com seus amigos e familiares, nos locais que frequentam. São moças e rapazes posando para as fotos, casais dando beijos ardorosos, crianças cantando “parabéns a você”, corpos suados dançando ao som dos bailes de música black. Os retratos, nesse sentido, além de guardarem as memórias individuais e coletivas de uma comunidade, traduzem, ainda, sua identidade.
Essa noção de ‘intimidade’ com a câmera expressa nas fotos é efeito não somente da representação de cenas cotidianas, mas também dos próprios títulos que as imagens recebem. Ao percorrer a exposição, o visitante se depara com legendas como “Aniversário do filho do Toninho Mexerica” ou “Casamento de Maria Ângela com Paulinho”. O emprego de apelidos no nome nas obras sugere ainda mais proximidade ao público, como se ele fizesse parte daquela vizinhança. É uma grande partilha de afetividade e memórias visuais.
Além das imagens, toda a mostra é envolvida por uma trilha sonora inspirada na black music dos bailes da década de 70: uma playlist feita por Misael Avelino, fundador da Rádio Favela. Há, também, cerca de 80 áudios espalhados pelo espaço com depoimentos dos dois autores, revelando suas versões sobre as histórias contadas em Retratistas do Morro.
Ao apresentar diferentes realidades e experiências, estas fotografias funcionam como um suporte para a criação de narrativas e, consequentemente, para o desenvolvimento de novos protagonismos. Nos retratos de João Mendes e Afonso Pimenta, os indivíduos captados pelas câmeras protagonizam suas próprias histórias e a história coletiva da região do Aglomerado da Serra. As imagens ultrapassam o documental e tornam-se biográficas.
Pensando o retrato como instrumento para a produção de memória e identidade de um povo, é possível aproximar o trabalho dos dois fotógrafos à obras de outros artistas, como Yedda Affini dos Santos, David Diaz Gonzalez e Samuel Fosso, que também exploram o campo dos retratos.
Yedda Affini dos Santos é uma artista carioca multidisciplinar, que trabalha principalmente com fotografia e performance, muito influenciada por expressões como a dança e o canto. Sua pesquisa é pautada na ancestralidade africana e nas sabedorias afro-diaspóricas deixadas como herança. Em seus retratos, a natureza, os rituais de cuidado e os diversos elementos da cultura preta são evidenciados – como o samba, que se conecta à religião de matriz africana. Assim, suas fotografias imergem o observador em determinada cultura.
David Diaz Gonzalez, por sua vez, nasceu na comunidade de Nuevo Saposoa, no Peru, que pertence ao povo indígena Shipibo-Konibo. Atualmente, vive em Lima e dedica sua carreira artística à pesquisa de sua própria comunidade, como uma forma de homenagear esta memória. Dentre os anos de 2018 e 2020, realizou inúmeras viagens neste território, a fim de registrar e eternizar o cotidiano dessas pessoas. Dessa forma, o artista acaba documentando, também, as mudanças que acontecem em relação às tradições desse povo no decorrer dos anos, com as adaptações que fazem ao “mundo moderno”.
Já Samuel Fosso, fotógrafo e artista visual, trabalha criando identidades alternativas, com o intuito de desafiar os padrões representacionais estabelecidos. Nascido em Kumba, Camarões, iniciou sua carreira produzindo autorretratos, sempre tensionando dimensões políticas e históricas. O artista, que está em cartaz na 22ª Bienal Sesc_Videobrasil, incorpora figuras históricas em suas obras e demonstra o poder da fotografia para construir mitos e questionar identidades.
Em todos esses casos, o retrato aparece como um instrumento de visibilidade, ressaltando o entendimento de que todas as pessoas podem se manifestar subjetivamente. Segundo Guilherme Cunha, idealizador de “Retratistas do Morro”, “Afonso e João encontraram espaço para registrar memórias daquela população diante da desigualdade, afirmando a potência de uma memória afetiva e a imagem como um local também de escuta”. Em 2023, o projeto recebeu diversos prêmios, como o Pipa Online, o Melhores do Ano da SP Arte e três prêmios do Design Brasileiro.
Serviço
Exposição: Retratistas do Morro
Curadoria: Guilherme Cunha
Local: Sesc Pinheiros (R. Pais Leme, n° 195)
Visitação: Terça a sexta, 10h30 às 21h; Domingos e feriados, 10h30 às 18h. Até 28 de janeiro de 2024.