“A ideia que faço de arte é que tanto ela pode ser ruim, como boa, como indiferente, mas de qualquer modo continua sendo arte, da mesma maneira que uma emoção, por ser ruim, não deixa de ser uma emoção.”
Marcel Duchamp
Um dos artistas do século XX mais discutidos e herméticos, Marcel Duchamp (1887 – 1968) produziu em múltiplas linguagens, foi criador dos ready-mades e o pai da arte conceitual. O francês alcançou sucesso e projeção por causa das drásticas rupturas com as ideias convencionais de arte, e permanece fonte de inspiração para outros artistas até a atualidade.
Depois de terminar o segundo grau, aos 17 anos, Duchamp mudou-se para o ateliê do irmão Jacques Villon, em Montmartre, bairro central de Paris. Seu outro irmão, Raymond Duchamp-Villon, também se alocou em Paris, todos por incentivo do pai, exceto a irmã Suzanne Duchamp, a qual não foi encorajada nessa jornada por ser mulher. Na biografia que a escritora Janis Mink dedicou à Duchamp, ela menciona a viagem dos irmãos, “enquanto à irmã a decência impunha viver na casa dos pais” (p. 11).
Duchamp é principalmente conhecido por sua obra, Fountain (1917), constituída como um marco para a história da arte ocidental. A obra fez parte de sua fase dadaísta, movimento em que os artistas tensionaram os padrões da concepção de obra de arte, expondo trabalhos irracionais assim como a irracionalidade da Primeira Guerra Mundial.
Esse ready made consiste em um mictório de porcelana deitado, assinado com um pseudônimo R. Mutt. O artista mandou a peça para expor na Society for Independent Artists, e embora qualquer artista que pagasse 6 dólares pudesse expor até dois trabalhos, Fountain não foi bem recebida pela comissão julgadora. Segundo Janis Mink, ele fez isso para confrontar a organização da mostra, a qual ele não gostava. A obra foi deixada atrás de uma parede sem visibilidade, não foi mencionada e nem entrou no catálogo.
Sobre a assinatura, o R significava Richard, uma gíria francesa para “pessoa rica”, e a palavra Mutt era uma referência à empresa fabricante do mictório, J. L. Mott Ironworks. Após a exposição, o fotógrafo Alfred Stieglitz foi convencido a fotografar a peça com a intenção de elevar o objeto como arte.
Fountain certamente não foi a primeira obra a chocar ou receber críticas negativas inicialmente e ser adorada anos depois. O artista Claude Monet (1840 – 1926) foi uma inspiração na juventude de Duchamp, que o conhecia por livros e o admirava profundamente. Monet foi criticado quando expôs Impression, soleil levant (Impressão, Nascer do Sol) em 1874, em uma exposição independente que ocorreu no ateliê do fotógrafo Félix Nadar. Chamaram a obra de impressão pela imprecisão da pintura, que parecia apenas uma impressão mal-acabada da paisagem. Com Duchamp não foi diferente, após a audácia do urinol, a concepção da produção artística nunca mais foi a mesma.
À esquerda, Paysage à Brainville (Paisagem em Blainville), tela que Duchamp pintou aos 15 anos de uma paisagem de sua cidade natal, na qual retrata a floresta e seus reflexos no lago. A pintura tem os mesmos fundamentos impressionistas: pincelada livre, sem contorno, retratando os reflexos da luz que o olho consegue captar, características técnicas observadas também na obra de Monet (à direita) The Waterlily Pond with the Japanese Bridge (Os Lírios D’água com a Ponte Japonesa).
Em Nu descendant un éscalier (Nu Descendo a Escada), é difícil identificar alguma figura. Nesta obra, o artista brinca com a relação entre as linhas e formas e os variados tons de amarelo e marrom nas extremidades. O estilo cubista dessa pintura conflui com os ideários estéticos do movimento futurista.
A relação com o futurismo se dá pela desintegração do espaço, o movimento e o maquinismo – meio abstrato – apresentados na pintura. Entretanto, de acordo com o poeta mexicano Octávio Paz, Duchamp precedeu o futurismo, pois pintou um esboço do que viria a ser a tela um ano antes da primeira exposição futurista, de 1912. Duchamp, porém, não tinha interesse em uma pintura dinâmica, buscava o contrário, a desaceleração do movimento.
Ele apresentou a tela pela primeira vez no Salon des Indépendants em Paris, em 1912. A obra foi retirada por não ser bem recebida. No ano seguinte, o artista expôs a mesma obra em Nova York, e também recebeu negativa do público. Contudo, foi nesse momento que se iniciou a reputação de Duchamp como um provocador artístico e consolidou o início de sua carreira.
Sobre os desenhos e pinturas de Duchamp, Octávio Paz escreveu em seu pequeno livro Marcel Duchamp ou o castelo da pureza, que “Duchamp desde o princípio foi um pintor de ideias, e que nunca cedeu à falácia de conceber a pintura como uma arte puramente manual e visual” (p.10).
Assim como os suportes da pintura, escultura, desenho, gravura e outros, o ready-made se tornou uma categoria na produção de Duchamp e foi abraçado principalmente no movimento da arte conceitual nas décadas de 1960 e 1970 e na arte contemporânea – ainda que não leve mais o nome ready-made, propriamente.
O termo consiste em objetos já fabricados para outras finalidades, como é o caso do mictório, ou de sua primeira obra nesses parâmetros, Roue de bicyslette (Roda de Bicicleta) de 1913.
Em Roue de bicyslette, o artista virou a roda de bicicleta para cima sobre um banquinho de cozinha de madeira, girando-a ocasionalmente apenas para observar o movimento da roda.
Só por volta de 1915, após comprar uma pá de neve em uma loja de ferramentas e escrever In Advance of a Broken Arm (Prevenindo um braço quebrado), Duchamp empreendeu o termo ready-made para essas manifestações.
“Desejo ressaltar que a escolha destes ready-mades nunca foi ditada por considerações de prazer estético. A escolha baseava-se numa reação de indiferença visual, independente de bom ou mau gosto … na realidade um estado de anestesia total (ausência de consciência)”, escreveu Marcel Duchamp em trecho do livro Dadá: arte e antiarte, de Hans Richter.
Nessa categoria, o artista nega a necessidade de habilidades artísticas, ou resultados agradáveis, o principal é a ideia da obra, ou seja, o conceito ou até mesmo, a falta de sentido e irracionalidade.
Um dos perigos que essa categoria artística está suscetível, é a perda. Atualmente, alguns dos objetos de Duchamp expostos em museus, são réplicas, os originais se perderam ou foram descartados – possivelmente por serem vistos apenas como um objeto aleatório. As peças manufaturadas foram substituídas, mantendo-se o conceito.
L.H.O.O.Q. é outra obra icônica do artista. Em um postal com a fotografia de Mona Lisa (1503) de Leonardo da Vinci, ele desenhou um bigode à lápis, assinou e escreveu as letras L.H.O.O.Q., que em francês se lê elle a chaud au cul, o que foneticamente corresponde a “ela tem calor no rabo”. Criando, portanto, uma brincadeira fonética e erótica.
The Bride Stripped Bare By Her Bachelors, Even (A Noiva Despida pelos Seus Celibatários, mesmo) ou The Large Glass (O Grande Vidro) produzida entre 1915 e 1923, configura uma das obras mais emblemáticas dele. A obra é um compilado, ou uma continuação de sua produção.
Todas as figuras da obra assemelham-se à máquinas. Na metade superior e sozinha, encontra-se a noiva despida. Por estar sozinha em quase metade do vidro, ela recebe destaque, aludindo à superioridade e distância em relação aos demais elementos da composição.
Na parte inferior do vidro, o que parecem roupas penduradas em varal, ou peças industriais, representam os nove celibatários da noiva. Próximo a eles encontra-se o triturador de chocolate, máquina que Duchamp já havia pintado anteriormente em Broyeuse de chocolat n°2 (Triturador de Chocolate n°2), de 1914. Nas palavras do pesquisador e admirador de Duchamp, Calvin Tomkins, sobre essa cena: “A noiva imagina e comanda; os celibatários reagem e obedecem.”
Em toda produção de Duchamp, o título é indispensável para compreensão, “uma obra que é tão verbal quanto visual”, segundo Calvin Tomkins. Contudo, se tratando de Duchamp, não podemos esquecer do quão irônico e humorístico era, sendo assim, qualquer interpretação é mera especulação; afinal, “não podemos nos esquecer de que ninguém entende totalmente O Grande Vidro”, afirma Calvin Tomkins. P. 12.
Em 1923, após trabalhar 8 anos na obra, o artista ficou entediado e perdeu o interesse, deixando-a “eternamente inacabada” – disse o artista em entrevista para Tomkins. Em um deslocamento da obra, em 1926, os vidros de quase três metros de altura racharam. O próprio Duchamp foi encarregado de restaurar a peça, mas gostou e aceitou os danos, assim, fixou outros dois vidros apenas para sustentação e proteção da peça.
Etant Donné: 1. ° la chute d’eau, 2.° le gaz d’éclairage, (Dados: 1. ° A Queda de Água, 2.° O Gás de Iluminação), mais conhecida como Etant Donné, foi a última obra de Duchamp e a mais demorada, levou cerca de 20 anos para ser produzida.
“Ela é tão chocante e imediata como o Grande Vidro é hermético e distante”, comenta Janis Mink.
A obra é uma caixa grande e engenhosa para ser instalada como se fosse apenas uma porta comum. No exterior, uma porta velha de madeira, sem maçaneta com tijolos vermelhos ao entorno. No interior, que pode ser visto apenas por dois buracos pequenos na medida dos olhos, a cena explícita de um corpo feminino nu, deitado de modo relaxado em galhos, gravetos e folhas naturais, com as pernas abertas, o longo cabelo loiro esconde o rosto (e a identidade). A única mão visível segura uma lanterna a gás acesa, e ao fundo, uma paisagem montanhosa. Parece uma brincadeira irônica e erótica com o olhar do espectador que se torna um Voyeur.
Calvin Tomkins vê a obra “como a continuação e conclusão, após quase meio século, de A Noiva Despida por Seus Celibatários, mesmo (O grande vidro). Fazendo uma relação entre a figura feminina despida em ambas as obras, agora com a sexualidade completamente explícita. Ele defende ainda que “O tema das duas obras é o encontro sexual … e em ambas é a fêmea que domina e controla a ação”.
Se por um lado, a obra agradou alguns, ela também foi rejeitada por outros. O crítico Joseph Masheck escreveu “esta parece incrivelmente grosseira e amadorística. […] De maneira nenhuma é uma obra-prima”.
Duchamp causou rebuliço no mundo das artes mesmo após a morte. A obra foi instalada no Museu de Arte da Filadélfia em junho de 1969. A instalação não foi divulgada, pois, ele desejava algo “discreto”, mesmo assim, a notícia vazou. O pintor norte americano Jasper Johns (1930 -) definiu Etant Donnés como “a mais estranha de todas as obras de arte já expostas em qualquer museu do mundo”.
Não há relatos do artista sobre sua última obra, exacerbadamente complexa, portanto, ninguém tem ideia do que Duchamp pensou exatamente durante sua produção. Os únicos escritos sobre ela estão em folhas soltas com instruções para desmontagem e remontagem.
Duchamp conheceu a artista Maria Martins (1894 – 1973) no início da década de 1940 em Nova York. Eles mantiveram relação amorosa em segredo por alguns anos. De acordo com Calvin Tomkins, “pouco depois de Duchamp e Maria se conhecerem, ele se veria empenhado na execução de uma grande obra – a primeira desde O Grande Vidro”.
Maria foi uma inspiração para Duchamp, que representou o corpo da amada. O desenho apresenta um corpo feminino nu, com a perna esquerda levantada e dobrada, e a perna direita estendida. Em cima da assinatura ele escreveu o que se dá como o título do desenho, Etant Donné: Maria, la chute d’eau et le gaz d’éclairage (Dados: Maria, a queda d’água e o gás de iluminação). Além do pequeno e simples desenho parecer um esboço da instalação Etant Donné.
Sobre a dificuldade para decifrar o trabalho de Duchamp, seja por um público especializado em arte ou não, Janis Mink afirma que “o próprio Duchamp aceitava calmamente todas as interpretações da sua arte, mesmo as mais fantasiosas, pois interessavam-lhe como criações das pessoas que as formulavam, embora não correspondessem necessariamente à realidade.”
Ele antecipou a relevância ou preferência do conceito e poética da obra sobre a materialidade ou padrões estéticos, suas transgressões foram fundamentais para os movimentos e artistas sucessores. Ele fez jus à crença popular do artista como alguém à frente de seu tempo.
Daniken Domene é técnico em audiovisual e graduando em Arte: História, Crítica e Curadoria pela PUC-SP.
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