Artista e arte-terapeuta, Lygia Clark foi uma das principais personagens do movimento neoconcreto, utilizando a psicanálise e a fenomenologia para desenvolver as suas obras. Lygia deixou o seu passado em busca de um novo sentido pessoal, abdicando da vida familiar e voltando-se para a arte como alternativa. A sua arte se tornou trampolim para a funcionalidade terapêutica, sendo adaptada para a psicologia, auxiliou na busca das suas respostas, como também nas questões dos diversos pacientes que utilizam os seus métodos. Mais do que fins estéticos, a sua obra foi ressignificada para fins terapêuticos.
Lygia Pimentel Lins nasceu em 23 de outubro de 1920 em Belo Horizonte, MG. Entre os seus irmãos, a sua irmã Sônia Pimentel Lins (1919 – 2003), que também foi artista e escritora, lançou o livro “Artes” em 1996, que conta sobre a infância com a irmã Lygia. No livro, a autora sugere que a trajetória artística da irmã já começou nas brincadeiras que elas aprontavam quando eram pequenas em Belo Horizonte, manifestando o interesse pelo desenho desde pequena.
Muda-se para o Rio de Janeiro em 1947 com a sua família onde inicia o seu aprendizado artístico com Burle Marx (1909-1994) e Zélia Ferreira Salgado (1904 – 2009), que se tornam os seus amigos, sendo a dupla que influenciou a artista em sua formação. Em seus primeiros trabalhos, podemos observar o figurativismo, com projetos que tinham como motivo a escada: ora mais sombria e enigmática (tela de 1948), ora mais colorida e abstrata (tela de 1951).
Este novo degrau surgiu em sua vida quando Lygia decide viver em Paris com os filhos em 1950, onde estudou com os cubistas Fernand Léger (1881-1955) e Arpad Szenes (1897-1985) e o pós-impressionista Isaac Dobrinsky (1891-1973). As influências dos artistas europeus resultaram em telas com características sintéticas, onde Lygia experimentou o estilo abstrato na obra “Composição”, de 1951, e o cubismo analítico na obra “O violoncelista”, de 1951. Após sua primeira exposição individual, em 1952, no Institut Endoplastique, em Paris, a artista retorna ao Rio de Janeiro e expõe no Ministério da Educação e Cultura.
Em oposição ao dogmatismo racional do concretismo paulista, que seguia a influência do movimento europeu, surge no Rio de Janeiro o movimento que deseja romper com a formatação dura e definida, abrindo espaço para a liberdade geométrica, a subjetividade e a interpretação de quem a observa: o neoconcretismo. Denominado como Grupo Frente, teve em sua formação artistas e poetas como: Amílcar de Castro (1920-2002), Ferreira Gullar (1930-2016), Franz Weissmann (1911-2005), Hélio Oiticica (1937-1980), Ligia Pape (1927-2004). Lygia Clark também é uma das fundadoras do movimento, integrante da 1ª Exposição Neoconcreta, em 1959.
O crítico de arte Mário Pedrosa (1900-1981) foi uma das principais vozes a propagar o movimento pelos jornais e galerias de arte. Sua casa tornou-se o ponto de encontro do grupo, onde se reuniam para discutir os trabalhos e as novas formas de fazer arte. Para Pedrosa, a verdadeira arte é a abstrata, pois a representação fidedigna do externo não cabe como um ato de verdade, mas sim os sentimentos internos que transparecem na obra. O crítico foi influenciado pelas ideias da corrente fenomenológica do filósofo francês Merleau-Ponty (1908-1961), em sua análise estética, Ponty defendia o uso da emoção como alternativa, desconsiderando a formatação científica como meio de alcançar a compreensão do sensível; ideias que foram incorporadas no neoconcretismo.
Inserida nas novas reflexões, Lygia dedica suas telas ao abstrato, não em algo que começa e morre em si, mas como um prelúdio que acarretará em novos projetos. Na obra “Quebra da Moldura nº 4” (1954), vemos uma provocação à moldura, a tentativa de romper a fronteira que delimita a obra. A movimentação dos quadrados e linhas induz a tentativa de fuga, dando continuidade da cena para além da tela.
Em outra obra, “Planos em Superfície Modulada nº 5”(1957), podemos observar a tentativa de romper com a perspectiva, brincando com qual seria o fundo da imagem, como se o objeto estivesse em movimento prestes a sair da tela; tais atitudes começam a demonstrar o início da desconstrução da sua pintura.
Neste raciocínio, a artista demonstra a sua insatisfação com o cânone acadêmico: a tela. Forma geométrica com ângulos retos, que há séculos reproduzimos no mesmo molde, como os filmes fotográficos, as telas de televisão e os celulares. Como saída, o grupo de artistas determinou a morte ao plano e a sua representação, propondo a saída do plano e expondo a verdadeira profundidade que há em um objeto e não a profundidade ilusória criada pelo artista na tela. Dessa forma, a obra cria autonomia, ingressando no mundo.
O escritor Ferreira Gullar, em sua teoria do não-objeto, desenvolveu a análise relacional entre a tela-obra e a necessidade do rompimento com o figurativo, criando uma figura desprendida de significação, que não representa nada em obviedade, não tem nome e que busca a sensorialidade e a liberdade. O luto pela morte do academicismo, assim como do plano, foi encarado diferentemente por cada artista do Grupo Frente. Com o passar dos anos, eles começaram a criar as suas próprias formas de manifestação da arte, caminhando por projetos distintos; surgindo os pós-neoconcretistas.
Foi também neste período em que a artista começou a trabalhar no Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), no Rio de Janeiro, no auxílio de crianças com deficiência auditiva. Este momento foi crucial para o desenvolvimento dos seus projetos, pois Lygia presenciou a importância do toque para as crianças, observando a sensorialidade que elas desenvolviam. Após este contato, os futuros trabalhos da artista gradualmente serão voltados à interação do observador com a obra, tendo papel fundamental em sua construção.
Gradualmente, Lygia começa a trocar a pintura pela experiência com objetos tridimensionais. De forma embrionária, a artista desenvolve o seu primeiro projeto que explora o espaço para fora da tela, a obra “Casulo”, de 1959. Composta de placas de metal dobradas fechadas, a artista expõe um projeto embrionário em formação, o início da gestação que irá originar uma nova vida, ou seguindo na linha da temática, um novo projeto artístico, desdobrando no ano seguinte na série “Bichos”.
A série “Bichos”, elaborada em 1960, foi o rompimento da transição entre o plano. As obras tridimensionais de Lygia não podem ser classificadas como escultura, categoricamente, pois as suas obras partem do pressuposto saíram do plano do papel em busca da sua liberdade individual, movimentando-se pelo espaço e tendo autonomia própria, diferente da rigidez da escultura; as obras entram na classificação não-objeto de Gullar. Os bichos terão características que se assemelham ao orgânico: com dobradiças que aparentam ser como uma coluna vertebral e sustentando as placas de metal que determinam os seus movimentos, que a princípio parecem ser infinitos. Os bichos são feitos de uma variedade de materiais, como alumínio, aço inoxidável e latão.
Em 1963, a artista disse que gostaria que a sua série Bichos não fosse exposta em museus ou galerias, mas que fossem vendidas em todos os lugares, inclusive nas esquinas, por camelôs. Ela queria que fossem produzidos vários dos objetos para serem comercializados, onde as pessoas pudessem adquirir, democratizando o acesso à sua arte. Para ela, a sua obra só fazia sentido se fosse tocada, integrando-a com o visitante, aproximando o elo que há entre obra-observador. Na prática, o oposto da sua proposta se concretizou. Em redomas de acrílico, como se estivessem fora do seu habitat natural, os bichos são expostos longe do toque dos visitantes.
Em outros projetos, Lygia inaugura as suas “obras moles”. Em “Trepantes”, de 1960, ela relaciona materiais sintéticos como o alumínio e a borracha com a natureza, como se fizessem parte do meio, são pendurados em troncos e árvores. A reflexão se estende, já que em origem, estes materiais vieram da natureza, logo, este reencontro é uma forma de autoconhecimento ou uma busca originária do material com o ambiente onde foi formado. A busca por sua essência vem de uma análise existencialista, corrente filosófica que também influenciou a artista.
Na obra “O dentro é o fora” de 1963, por exemplo, vemos as curvas orgânicas embaralhadas como se estivessem saltadas para fora, do avesso. A artista propõe a projeção da psique humana a ser investigada; é a tentativa de olhar-se para dentro em busca do seu Eu. Como a obra está projetada para fora, o seu interior é vazio, onde mais uma vez a artista brinca com a dialética existencial: mesmo em constante busca por nossa identidade, estamos sendo perseguidos por vazios existenciais que nos assombram e nos angustiam.
Lygia foi revolucionária em aproximar o visitante da obra, colocando o participante como parte necessária para que a obra ocorresse, tendo a preocupação de propor temas que estimulassem a reflexão e a sensibilidade. Fundamentando um novo estilo de arte que se expande para além da limitação da arte, utilizou como base a criação de ferramentas com fins terapêuticos: a arte terapia.
“(…) No interior que está o exterior, uma janela e eu. Através desta janela quero passar para o exterior que é o interior que procurava o espaço exterior. O Bicho que chamei de “dentro e fora” nasceu desse sonho. É uma estrutura de aço inoxidável, flexível e deformável. Há um vazio no centro da estrutura. Quando você o manipula, esse vazio interno dá à estrutura aspectos completamente novos. Eu considero “dentro e fora” como a conclusão dos meus experimentos com os Bichos (…) muitas vezes eu acordo diante da janela do meu quarto procurando o espaço exterior como se estivesse “dentro”.”
Lygia Clark, em seu diário.
Com o aprofundamento em projetos sensoriais, Lygia preferiu começar a ser chamada de “propositora” ao invés de artista, abdicando da formatação artística que a esfera das artes visuais desejava; libertou-se dos padrões pré-estabelecidos. Ela se tornou cada vez mais crítica em relação às instituições de arte, começando a pensar em seu trabalho fora do escopo da arte tradicional; deixando de criar objetos que seriam voltados para exposições, ela abandonou o mundo das artes e a sua demanda. Com o seu projeto tornando-se terapêutico, sugeriu que seus trabalhos não fossem chamados de obras de arte, mas sim de “proposições”, experiências sensoriais que seriam feitas individualmente ou em grupo.
Influenciada pelo período que trabalhou no INES, suas proposições foram voltadas para a exploração sensorial do corpo, que visava expandir a percepção sensorial do paciente, com a tentativa de retomar memórias ou trazer emoções à tona. No projeto “O Eu e o Tu”, de 1967, um casal veste uma roupa de borracha interligada por um tubo. Com os olhares obstruídos, a experiência propõe a exploração pelo toque, sem o julgamento do olhar. Para potencializar a interação, existem aberturas na roupa que dão acesso à pele, contrastando com a rigidez do material. A proposta da artista era interligar o sexo masculino e feminino em uma única unidade, com o auxílio do tubo, que remete ao cordão umbilical.
Lygia começou a desenvolver projetos voltados para as proposições existenciais, que dependiam da interação coletiva entre os participantes, inaugurando a instalação em suas propostas. “A Casa é o Corpo”, de 1968, é uma estrutura com 8 metros de comprimento cujo contexto pode ser abordado por diversas interpretações simbólicas, como a percepção de adentrar em nosso próprio corpo ou na origem uterina, sendo um convite a retornar de onde viemos. Seguindo em projetos feitos em grupos, em “Baba Antropofágica”, de 1969, a artista cria o contexto onde os participantes colocam um carretel de linha na boca, puxam a linha e a colocam em cima do corpo do participante que está deitado. A soma das diversas linhas forma uma rede conectada com a saliva, por puxar a linha de dentro da boca, a sensação aparente induz que estão puxando as vísceras para fora, libertando-se do que incomoda. Nestes projetos, Lygia assumiu o papel de propositora, provocando uma temática e canalizando experiências, não interferindo de forma ativa sobre os projetos.
Em 1976, Lygia inicia a nova fase relacional, atuando de forma ativa e individual com os seus pacientes. Neste projeto, ela estudará os processos terapêuticos da arte sensorial com os “Objetos Relacionais”, que são ferramentas sinestésicas criadas por ela para serem utilizadas nas sessões. Como se fossem ready-mades invertidos, Lygia criou diversos objetos sensoriais que estimulam o paciente: água, luvas, máscaras, conchas, isopor, lanterna, pedras, tecidos e sacos plásticos foram utilizados nas sessões em que ela aplicava. Classificado por ela como a “Estruturação do Self”, terapia na qual Lygia se dedicava em trabalhar com o inconsciente dos pacientes, trazendo à tona os seus medos, traumas e fragilidades pela sensorialidade.
Em 1988, a artista morreu em decorrência de um ataque cardíaco. A sua pesquisa, porém, não foi interrompida, o artista e terapeuta Lula Wanderley, colega e admirador do seu trabalho, continuou seguindo os seus projetos e aplicando a terapia em pacientes; hoje ela é usada em tratamentos de transtornos psicóticos no centro psiquiátrico do Rio de Janeiro, o Espaço Aberto ao Tempo (EAT). O espaço, fundado por Wanderley, é resultado da influência da médica psiquiatra Nise da Silveira (1905-1999), com quem trabalhou e com a influência filosófica de Mário Pedrosa.
No último mês foi inaugurada a 13ª edição da Bienal do Mercosul que expõe pela primeira vez trechos do diário clínico de Lygia, em cartaz até 20 de novembro.
Carlos Gonçalves é graduando em Jornalismo pela PUC-SP, com pesquisa científica em crítica de arte.
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