Tomie Ohtake nasceu em Kyoto, no Japão, em 1913. Desembarcou no Brasil aos 23 anos em uma breve visita a um de seus irmãos que por aqui vivia. Entretanto, devido à Guerra do Pacífico, Ohtake não pôde retornar ao Japão no tempo previsto.
Uma vez aqui, construiu laços e carreira. Ohtake casou-se e teve dois filhos. Pode-se dizer que Tomie sempre teve pulsante, em si, a arte, e embora não tenha desenvolvido em sua juventude, a experiência com a caligrafia japonesa a aproximava de uma sensibilidade artística que sempre a interessou.
Vivendo uma vida pacata de dona de casa na Mooca, bairro tradicional de São Paulo, teve aos 39 anos um grande estimulador para sua produção; o professor de arte e pintor japonês Keiya Sugano. Orientada por ele e transformando sua casa em ateliê, fez suas primeiras telas; pinturas figurativas e paisagens sob influência relevante do fauvismo e do cubismo. Infelizmente, grande parte dessa fase inicial foi perdida em uma das enchentes que atingiu sua casa.
A experiência foi fundamental para tirar a arte da latência. Já no ano seguinte, 1952, passou a integrar o Grupo Seibi – Grupo de Artistas Plásticos de São Paulo, formado em 1935, que reunia um grupo de artistas imigrantes japoneses.
Aos 50 anos a artista já realizava mostras individuais, ganhava prêmios e estava em plena ascendência na sua carreira. Hoje, Ohtake coleciona números expressivos que demonstram o impacto de sua produção: 28 prêmios, participação em 20 bienais internacionais, mais de 400 exposições coletivas e 120 individuais.
Tomie Ohtake trabalhou fundamentalmente com três linguagens: pintura, gravura e escultura. Nelas, operou com elegância as influências japonesas em sua produção assentada no ocidente. Em depoimento para o catálogo do XV Salão de Campinas, 1975, afirma:
“A minha obra é ocidental, porém, sofre grande influência japonesa, reflexo da minha formação. Essa influência verifica-se na procura de síntese: poucos elementos devem dizer muita coisa. Na poesia haikai, por exemplo, fala-se do mundo em 17 sílabas. Sendo poucos os elementos, eles devem ser muito precisos, tanto na forma quanto nas cores e relações”.
A artista encontrou a potência de sua poética no abstracionismo informal, marcado pela forte expressividade e guiado pela sensibilidade, interessava-a a articulação de tons contrastantes e intensos. O resultado disso é uma obra de cores exuberantes ainda que de paleta sóbria, explorando precisão e leveza como marcador de sua autenticidade.
Contudo, a artista não permitiu que seu trabalho fosse restrito a essas linguagens, Ohtake expandiu e também desempenhou proposições cenográficas para teatros e até concepção de troféus para premiações.
A gravura “Abstrato” revela uma grande inspiração que a acompanhou em sua poética. A artista apreciava a obra do pintor estadunidense Mark Rothko; as influências aparecem em sua admiração pelo modo como ele integrava as cores, sendo absorvida em seu trabalho que também explora as potências da amálgama. Na referida gravura, temos a experiência de olhar dois tons de vermelho que parecem estar na iminência de se tornarem um só, além de se fundirem completamente a tela, tornando a cor o próprio suporte.
Tomie não trabalha com dicotomias, ela as funde e elabora novas concepções, cria novos territórios de discussão. Do mesmo modo que não é possível estabelecer uma fronteira entre sua influência japonesa e sua influência ocidental, o mesmo se dá com seu abstracionismo sensível, que é obediente às formas, e tem uma distribuição organizada das cores, como se existisse uma preocupação racional intrínseca à sua intuição.
Ela falava que ao acordar e abrir os olhos, às vezes, se deparava com formas em cores e então as transportava para as telas. Essa sensação de embriaguez, de sono, se faz presente apesar da forma rígida que ela consegue conferir aos seus trabalhos.
Na década de 1960, a artista radicalizou seu processo criativo e realizou uma série de pinturas feitas às cegas. Com os olhos vendados e sem a mediação do pincel, colocou o tato como sentido primário e vulnerável ao acaso. Desta experiência, resultaram obras alinhadas à sua produção anterior, com a paleta reduzida e tons sóbrios, os movimentos ainda são precisos e até silenciosos.
Em meio ao seu mar de telas, possui mais de 30 esculturas públicas, no Brasil e em outros países como o Japão. Ao inscrevê-las na paisagem acrescenta-se um impacto cultural de proporções admiráveis, concebendo a oportunidade de ver a circulação da população ser atravessada por uma obra de arte.
No documentário Tomie (2014), um filme de Tizuka Yamasaki, a artista revela o que movimenta nela a produção de obras públicas. Ela afirma que, em sua perspectiva, para o ser humano ser completo é necessário que tenha contato com arte, disso deriva sua atuação. A partir dessa fala e suas crenças, é possível perceber que seus monumentos são realização de uma aspiração democrática para arte e para sociedade, a contribuição para a cidade era parte do que a movia.
A escultura que a artista Tomie Ohtake doou para Santos, em homenagem ao centenário da imigração japonesa no Brasil, em 2008, é uma de suas marcantes esculturas. Colocando um intenso vermelho que interpela a paisagem azul, a escultura de aço pesa aproximadamente 20 toneladas e ganha uma leveza ímpar sob os cuidados de Ohtake.
A escultura pouco volumosa cria uma relação profunda com o ar, sua forma orgânica e curva confere um movimento que pode se assemelhar ao movimento das ondas, mas não como uma forma limitante, as interpretações ficam a critério da imaginação do público.
Além dessas esculturas em cores intensas e movimentos inesperados, a artista também produziu uma série de esculturas feitas de tubos metálicos, pintados de branco, conhecidas como esculturas lineares que ganhou uma sala especial na 23ª Bienal de São Paulo (1996).
Estas, revelam mais que movimento, elas operam numa lógica de agilidade, que reage ao toque do público. Neste momento, ela experimenta e aprofunda a sua relação com a linha, que se faz presente em toda sua obra, mas surge aqui em seu ponto alto de articulação, tornando-se a protagonista.
Tomie Ohtake não gostava de usar avental para pintar e amava explorar a transparência, isso compõe seu processo criativo que priorizava a intuição com uma cautela louvável e reflete a fluidez de seus trabalhos, que apenas o permitir-se é capaz de revelar. No documentário citado, um de seus netos prontamente pontua que a maior influência de sua avó é a intuição.
Um de seus tantos legados para o mundo é o Instituto Tomie Ohtake, inaugurado em novembro de 2001, foi concebido para ser centro de recepção de mostras nacionais e internacionais de artes plásticas, arquitetura e design e se debruça sobre a pesquisa da arte contemporânea.
O atual presidente do instituto é Ricardo Ohtake, filho de Tomie, gestor cultural, arquiteto e urbanista, artista gráfico e curador. O curador chefe é Paulo Miyada que divide o núcleo com Priscyla Gomes e Ana Paula Lopes. O instituto representa, principalmente para a cidade de São Paulo, um foco importante de fomento em pesquisa, formação de público e relevantes produções e publicações.
Tomie Ohtake morreu em 2015, aos 101 anos, em decorrência de uma broncopneumonia. A artista transitou pelos espaços planos das telas, adentrou ambientes e penetrou paisagens, ora se fez imponente com suas intensas esculturas, ora silenciosa com suas telas, mas conseguiu de todos os modos se inscrever definitivamente na história. Em seu último ano de vida produziu mais de 30 telas, para manter a consonância com algo que repetia: eu gosto mais de pintar do que de falar.
Giovanna Gregório é graduanda em Arte: História, Critica e Curadoria pela PUC-SP. Pesquisadora e crítica independente.
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