“Arte digital” é um termo que guarda infinitas possibilidades dentro de si. Antes de se pensar nas classificações de uma arte que parte de tecnologias digitais, talvez seja mais interessante compreender como tais tecnologias vêm se tornando um fio condutor para a colaboração entre as artes plásticas e outros campos criativos como a moda, a música, o audiovisual e a arquitetura. A seguir, diversas gerações da arte digital brasileira e internacional irão ilustrar caminhos que vêm sendo traçados por artistas que flertam com esses outros campos em suas pesquisas.
Projeto Poétrica de Giselle Beiguelman. Imagem: reprodução.
Pioneira na arte digital brasileira, Giselle Beiguelman acompanha o desenvolvimento tecnológico e suas possibilidades de criação e interação na arte há décadas. No início dos anos 2000 a artista e pesquisadora adentrou o espaço da propaganda através de um sistema que transmitia mensagens de SMS em outdoors digitais, populares em São Paulo e outros pólos urbanos na época. Poemas, mensagens de amor e declarações de todo tipo podiam ser enviados para o site da artista e logo depois eram codificados para fontes não fonéticas nas telas de 3 outdoors da capital paulistana. Desde então, Beiguelman continuou a investigar os atravessamentos da arte digital no espaço público, físico ou virtual – como as redes sociais, mais recentemente.
Conforme o campo virtual foi adquirindo novas ferramentas e complexidades, a arte digital pôde adentrar outros questionamentos. A incorporação de Inteligência Artificial em processos artísticos, por exemplo, se tornou mais um modo de revisão da nossa própria história e realidade. Em parceria com o artista Ilê Sartuzi para a plataforma Videobrasil Online em 2021, Beiguelman desenvolveu o projeto Nhonhô, um documentário que parte da arquitetura do casarão Nhonhô Magalhães, em Higienópolis. O trabalho consiste em um percurso virtual dentro do espaço do casarão recriado tridimensionalmente através de fotografias, contando com uma narração de fundo. A tecnologia de Inteligência Artificial foi utilizada para colorir esse espaço virtualizado.
Giselle Beiguelman e Ilê Sartuzi. Nhonhô, 2021. Imagem: reprodução Select.
É interessante notar como a produção de arte 3D no Brasil tem promovido o encontro de diferentes gerações. Na ocasião da comemoração de seus 15 anos, o Museu Nacional da República (MuN) inaugurou, entre outras exposições físicas, a digital Segue em Anexo, com obras de Giselle Beiguelman, Vitória Cribb e Bruno Kowalski. O projeto inaugurou uma parceria do museu com a Academia de Curadoria, um laboratório de práticas curatoriais e crítica da Universidade de Brasília (UnB), com o intuito de construir um acervo digital.
Através da criação de avatares com extrema definição de detalhes, espaços virtuais imersivos e plataformas interativas, Vitória Cribb investiga o comportamento humano frente às inserções tecnológicas na sociedade contemporânea. @ Ilusão, um dos projetos mais recentes de Cribb, é um exemplo de como a arte digital não vem sendo pensada apenas como a simulação de uma realidade através da tecnologia mas, muito além, se tornou um campo de experimentação e imaginação de múltiplas realidades. Cribb acaba de ser indicada ao Prêmio PIPA, entre 66 artistas que trabalham com todos os tipos de linguagens, das mais tradicionais como a pintura até a arte digital.
Vitória Cribb. @Ilusão na exposição Disembodied Behaviors. Imagem: captura de tela.
Os efeitos do isolamento social durante a pandemia foram inegáveis em todos os setores comerciais e criativos, o que pediu que novos recursos fossem desenvolvidos para manter o funcionamento destes e, mais do que isso, sua sobrevivência. Além do mercado de arte que explorou os viewing rooms, o mundo da moda também buscou novas maneiras de apresentar coleções semestrais.
A maioria das marcas utilizou a gravação de desfiles para transmissão digital, mas alguns designers de moda foram além e se apoiaram na arte 3D para inovar. É o caso da estilista Anifa Mvuemba, criadora da grife Hanifa, que chamou atenção do circuito da moda internacional em 2020 com um desfile feito inteiramente em arte 3D. No vídeo, as roupas são apresentadas em movimento em um fundo preto infinito. Sem um corpo definido, as roupas flutuam envolvendo uma silhueta invisível que caminha em diversas direções. Naquele momento, os grandes canais de comunicação da moda afirmaram que o formato trazido por Mvuemba era o futuro da área. No mesmo ano, no Brasil, o artista Rodrigo de Carvalho colaborou com a marca Another Place de Rafael Nascimento, em um desfile virtual que contava com trilha sonora de Barbara Ohana.
A plataforma BRIFW – Brazil Imersive Fashion Week – é uma das provas de que existem caminhos digitais concretos para a moda, para além do contexto pandêmico. Com apresentações de marcas e artistas independentes, cursos e diversos conteúdos, a plataforma é pioneira no campo digital da moda no país. Em 2021, a BRIFW esteve na SP Arte com a exposição AR JAM, convidando Érica Storer, Gabriel Massan e Ynã Kabe Rodríguez para a curadoria da exposição feita exclusivamente em realidade aumentada.
Em 2021, na exposição da Temporada de Projetos do Paço das Artes, o artista Higo Joseph apresentou a vídeo-instalação Simbiose, que consistia em uma sala iluminada apenas pela luz de 3 monitores, cada um apresentando o que o artista chama de esculturas sonoras. O trabalho surge do acúmulo de diversos objetos 3D coletados em lojas de software, que foram fundidos por Joseph em uma nova configuração. Os sons que compuseram os vídeos também foram captados pela internet. A combinação desses fragmentos tridimensionais e sonoros exigia do visitante uma busca pela origem daqueles objetos. O trabalho questionava o destino de protótipos 3D que são guardados em sites e caem em desuso com o tempo.
A arte 3D, inserida no contexto de uma produção feita exclusivamente para a internet, pode se tornar uma ferramenta democrática e participativa. Durante a pandemia, por exemplo, uma plataforma chamada AINDA MT NADA foi desenvolvida na internet por Felipe Barsuglia e Yan Copelli, que convidaram artistas para interferirem por períodos curtos. A cada ocupação realizada por um artista na plataforma, novos elementos eram adicionados de acordo com uma pesquisa específica, e tudo era interativo e modificável – às vezes de modo imprevisível. Entre os artistas que participaram da ação, estava Cribb com o projeto W97M/MELISSA, que se referia a um vírus que atingiu softwares nos anos 90.
Planta 3D da plataforma MAM Rio 3D. Imagem: captura de tela.
Instituições brasileiras também têm utilizado a tecnologia 3D para que cada vez mais pessoas possam conhecer suas exposições. É o caso do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, que em 2021 lançou a plataforma MAM Rio 3D, que permite acesso em exposições através de um tour virtual. Este tipo de iniciativa permite que pessoas de todos os cantos do país, que geralmente não poderiam se deslocar até o museu, possam também usufruir deste espaço cultural.
Tão rápido quanto o avanço tecnológico na sociedade contemporânea é a capacidade das artes em englobar o impacto dessa evolução. Enquanto o digital na arte se reconfigura enquanto suporte, ferramenta e meio de ampliação de narrativas, o cruzamento de inúmeros campos criativos acaba por ampliar cada vez quem é afetado por inovações artísticas.
Diogo Barros é curador, arte educador e crítico, formado em História da Arte, Crítica e Curadoria pela PUC SP.
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