A história da arte ocidental privilegiou artistas brancos – em especial os homens europeus – por muitos séculos, e o reflexo disso é a falta expressiva de outros perfis no acervo de museus, o que pode estar em vias de mudança.
Nos últimos anos, museus no Brasil e no mundo todo têm revisado suas narrativas através de exposições que destacam artistas até agora apagados – ou ignorados pelo sistema – como são os artistas negros, indígenas e as mulheres, por exemplo.
Conheça exposições dos principais museus brasileiros que buscam, a partir de novas perspectivas institucionais, incorporar essas produções dissidentes em seus acervos.
No final de 2015 a Pinacoteca de São Paulo celebrou 110 anos de instituição com uma exposição que tinha como premissa traçar um diálogo entre artistas negros contemporâneos recém chegados ao acervo da Pinacoteca e outros que já faziam parte do acervo geral.
Com curadoria de Tadeu Chiarelli, a exposição reunia 106 obras em diversas linguagens como pintura, escultura, desenhos, gravuras, entre outras. Entre elas, estava a primeira obra de um artista negro a entrar para o acervo da Pinacoteca, um autorretrato de Arthur Timótheo da Costa, produzido em 1908, e doado para o acervo da instituição em 1956.
Outros artistas destacados pela curadoria são Antonio Bandeira, Mestre Valentim, Rubem Valentim, Rosana Paulino e Jaime Lauriano – este último que realizou uma significativa curadoria na Pinacoteca seis anos depois de participar desta exposição: a Enciclopédia Negra.
A exposição Enciclopédia Negra nasce de um livro homônimo produzido pelo artista Jaime Lauriano e pelos pesquisadores Flávio Gomes e Lilia M. Schwarcz. Inaugurada em maio deste ano, a exposição apresenta 103 obras inéditas, produzidas por 36 artistas contemporâneos convidados pelos curadores.
As obras são retratos de grandes personalidades negras que tiveram suas imagens apagadas ou simplesmente nunca produzidas. Todas as obras foram doadas ao acervo permanente da Pinacoteca, aumentando de 26 a 129 a presença de obras de artistas negros na instituição.
Entre os artistas presentes na exposição, estão Ayrson Heráclito, Bruno Baptistelli e Rodrigo Bueno.
Em texto oficial, a Pinacoteca afirmou “Revisar narrativas consolidadas na história social e institucional, no que se refere a representatividade de gênero e raça, tem sido uma das principais missões da Pinacoteca atualmente”.
Com curadoria de Cecilia Fajardo-Hill, curadora venezuelana britânica, e Andrea Giunta, pesquisadora ítalo-argentina, e colaboração de Valéria Piccoli, curadora-chefe da Pinacoteca, a exposição foi a primeira a reunir um conjunto expressivo de produções experimentais feitas por mulheres na América Latina.
Eram mais de 280 trabalhos de cerca de 120 artistas, contando com grandes nomes da arte contemporânea brasileira, entre: Lygia Pape, Cecilia Vicuña, Ana Mendieta, Anna Maria Maiolino, Regina Silveira, Regina Vater, Letícia Parente, Ana Bella Geiger, Iole de Freitas, Vera Chaves Barcellos, Martha Araújo.
Esta exposição focava na centralidade do corpo nas experimentações de artistas mulheres que vivenciaram períodos de extrema opressão, como das ditaduras militares que ocorreram na América Latina.
O Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand tem realizado ciclos temáticos anuais, pelos quais realiza uma série de exposições, palestras e cursos em uma extensa programação. Os ciclos abordaram temas amplos, como sexualidade em 2017, e também trouxeram histórias apagadas, como de artistas negros e mulheres.
A mega exposição Histórias afro-atlânticas foi dividida em espaços expositivos do MASP e do Instituto Tomie Ohtake, totalizando 450 obras de 214 artistas. Com obras produzidas entre os séculos 16 e 21, a exposição tratava de questões envolvidas com o trânsito entre a África, as Américas, o Caribe e a Europa, dos mais de 11 milhões de africanos que atravessaram o Oceano Atlântico nos séculos de escravidão.
Estavam presentes artistas como Dalton Paula, Paulo Nazareth, Sidney Amaral, Rubem Valentim, entre outros.
Sidney Amaral, ‘Mãe Preta ou A fúria de Iansã’ [Black Mother or the Fury of Iansã], 2014. Reprodução: MASP.
A presença de artistas de tantas épocas e origens ao lado de contemporâneos, permitia que além de uma revisão histórica – crítica, e também orgulhosa – outras narrativas e perspectivas futuras fossem traçadas.
Histórias afro-atlânticas recebeu da Associação Paulista de Críticos de Artes (APCA) o Grande Prêmio da Crítica de melhor exposição de 2018. O time de curadoria contou com Adriano Pedrosa, diretor artístico do MASP; Ayrson Heráclito; Hélio Menezes; Lilia Moritz Schwarcz, curadora-adjunta de histórias no MASP; Tomás Toledo, curador do MASP.
Com um recorte temporal que começa no século 1 e vai até o século 19, e obras de artistas mulheres advindas do mundo todo, a exposição Histórias das Mulheres realizada em 2019 pelo MASP buscou ampliar a representatividade das mulheres na arte.
Além de obras feitas em suportes mais comerciais, como a pintura, a exposição trazia muitas obras têxteis, demonstrando a contribuição das mulheres para linguagens tradicionais, como a tapeçaria. O time de curadoria era formado por: Julia Bryan-Wilson, curadora-adjunta de arte moderna e contemporânea do MASP; Lilia Schwarcz, curadora-adjunta de histórias do museu; e Mariana Leme, curadora assistente do MASP.
Abigail de Andrade, Mulher Sentada em Frente a Escrivaninha, 1890. Acervo do MASP. Reprodução: MASP.
Ao expor as linguagens canônicas ao lado daquelas consideradas artesanais, a curadoria buscou evidenciar a persistência e presença das mulheres nas artes, apesar de todos os desafios, como terem sido barradas em espaços de aprendizagem artística, por exemplo.
Os avanços das mulheres no século 21 foram abordados na exposição Histórias feministas: artistas depois de 2000. Com curadoria de Isabella Rjeille, a exposição reunia 30 artistas e coletivos para refletir o impacto da luta feminista nas conquistas das mulheres, especialmente na arte.
Recentemente o Museu de Arte Moderna de São Paulo inaugurou duas exposições com temáticas muito distintas, mas dentro de um mesmo propósito: realinhar a postura institucional do museu dentro do cenário atual.
As exposições Moderno onde? Moderno quando? A Semana de 22 como motivação e Moquém_Surarî: arte indígena contemporânea buscam um novo olhar – e um novo modo de se fazer curadoria – sobre a arte moderna e a arte indígena contemporânea.
Sem título, da série Anna Senkamanto, anna komanto – nosso trabalho, nossa vida, 2020, Elisclésio Makuxi / divulgação.
Às vésperas das comemorações do centenário da Semana de 22, a curadoria de Aracy A. Amaral e Regina Teixeira de Barros sobre o modernismo brasileiro apresenta um panorama muito mais amplo, tanto temporal como regional, demonstrando como o modernismo no Brasil não se limita à atuação dos sudestinos.
Já a exposição Moquém_Surarî: arte indígena contemporânea foi curada por Jaider Esbell, artista macuxi e um dos mais importantes agentes indígenas no cenário da arte contemporânea nacional. A exposição é o exemplo perfeito de como se fazer exposições de grupos ainda marginalizados no circuito das artes visuais: convidando-os a encabeçar o projeto, e assim possibilitando que essas novas visões sejam apresentadas.
Esta exposição se baseia em uma verdadeira reflexão acerca da formação de acervos brasileiros, incluindo suas motivações, critérios e legados.
Com curadoria de Beatriz Lemos, Keyna Eleison e Pablo Lafuente, a exposição reúne 300 obras de 3 acervos: o próprio MAM Rio, o Museu de Arte Negra/IPEAFRO – associação responsável pelo legado de Abdias Nascimento, e o Acervo da Laje, espaço de pesquisa dedicado à memória artística e cultural do Subúrbio Ferroviário de Salvador.
Carnaval (1952), Elisa Martins da Silveira. MAM Rio/Doação da artista. Reprodução: MAM Rio.
Ao expor obras de contextos tão diversos, como dos artistas Abdias Nascimento, Heitor dos Prazeres, Anita Malfatti, Maria Leontina e Yara Tupinambá, a exposição propõe um novo modo de se pensar a formação e proposição de diálogos em acervos museológicos. A exposição foi inaugurada no início de setembro e segue até 9 de janeiro de 2022.
Estes foram apenas alguns exemplos nacionais de um movimento que ocorre no mundo inteiro. O sistema das artes visuais percebeu que não é mais possível se sustentar nos mesmos artistas e nas mesmas produções que ocupam sua centralidade há séculos.
Ao absorver essas categorias que há tanto tempo são excluídas, os museus e demais instituições culturais não estão apenas abrindo espaço para esses artistas, permitindo novos futuros, mas estão também garantindo sua sobrevivência e relevância na cultura.
O caminho é longo, e essa movimentação não pode parar.
Comente abaixo se já viu outra exposição deste tipo!
Diogo Barros é curador, arte educador e crítico, formado em História da Arte, Crítica e Curadoria pela PUC SP.
Referências:
http://pinacoteca.org.br/programacao/enciclopedia-negra/
http://pinacoteca.org.br/programacao/territorios-artistas-afrodescendentes-no-acervo-da-pinacoteca/
https://masp.org.br/exposicoes/historias-afro-atlanticas
https://masp.org.br/exposicoes/historias-das-mulheres
https://masp.org.br/exposicoes/historias-feministas
https://mam.rio/programacao/a-memoria-e-uma-invencao/
http://pinacoteca.org.br/programacao/mulheres-radicais-arte-latino-americana-1960-1985/
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