Um novo recorde de preço em leilão nos Estados Unidos foi alcançado nas últimas semanas por Jean-Michel Basquiat. Um nome já familiar no mercado de arte internacional por seus recordes de venda em 2016 e 2017, Basquiat teve uma carreira curta e muito intensa, participando inicialmente de um movimento de grafite em 1978 e expandindo sua linguagem até chegar na capa da The New York Times Magazine em 1985.
O valor atribuído a sua tela “Warrior” (1982), vendida em março deste ano foi de 41,8 milhões de dólares, o maior valor de obra de arte ocidental vendida para a Ásia. O trabalho representa o ponto mais alto da carreira do artista, com exposições na Itália, na Galeria Gagosian em Londres e principalmente, na Documenta de Kassel, uma exposição de arte alemã realizada a cada cinco anos com forte influência no mercado.
O circuito artístico viu em Basquiat um imenso potencial de criação. Já com as primeiras manifestações de grafite assinadas como SAMO (em referência à expressão estadunidense “same old shit”/sempre a mesma merda, em tradução livre), as críticas foram positivas. As frases espalhadas por Manhattan, às vezes poéticas, às vezes políticas, eram assinadas em conjunto com o artista Al Diaz.
Apesar de não ter baseado sua carreira na linguagem do grafite, é inegável o caráter urbano do pensamento de Basquiat. A sobreposição dos vários elementos textuais e ilustrativos que insere na tela, mas principalmente pelos traços toscos, suas pinturas têm a cara de Nova York dos anos 80.
As produções urbanas com frequência dispensam demasiado refinamento e qualquer processo que represente um tempo estendido. A rapidez e a dinamicidade levam a traços rápidos e o bombardeio de informações dos meios de comunicação levam à grande quantidade de referências. Basquiat estabeleceu como identidade visual a interdisciplinaridade de linguagens, onde os textos e imagens se complementam na tela.
A espontaneidade se manifesta com força nas obras de Basquiat. Não era um artista que planejava e idealizava seus motivos, ao invés disso, experimenta e estuda seus interesses no próprio fazer artístico.
Sem diretrizes de estilos, técnicas ou leis que não as próprias, as associações e inserções nas obras são feitas de forma espontânea. Não aleatória, porque nada há de aleatório em Basquiat, mas todas as referências são intuitivas e se manifestam a partir do seu mergulho na cultura underground de Nova York.
Diferente dos movimentos inscritos na história de arte que costumam apresentar um grupo de artistas com uso de técnicas e discurso específicos, o movimento que Basquiat participa está conectado a uma transformação das produções em um panorama geral e interdisciplinar. É um movimento artístico de abandono das propostas minimalistas até então acadêmicas para abrir espaço para um movimento social de explosão da cultura de massa, o nascimento do hip hop e a expansão da cultura propriamente urbana e underground.
Ao mesmo tempo que pintava, tocava clarinete e sintetizador na sua banda experimental Gray. Seu envolvimento com música é forte, o que possibilita um paralelo da sua composição visual com as notas e arranjos dos novos estilos experimentais que surgiam na época como manifestações contrárias à estrutura padrão da harmonia musical. Com contrastes atonais e desarmônicos, as bandas do estilo “noise” (“barulho” em português) construíam as músicas de forma assimétrica e “irritante”, com excesso e repetição de informações e sons, bem como silêncios não padronizados entre o canto e o instrumental.
Nessa ótica do excesso, as pinturas de Basquiat evocam som e podem ser lidas como uma concretização visual da música experimental da década de 70. As apresentações feitas com a banda Gray, inseriu o trabalho de Basquiat diretamente nesse movimento underground ao se relacionar com outras bandas e se aproximar de músicos e artistas da cena.
Não à toa, nessa rede de relações, conhece e se aproxima fortemente de Andy Warhol, que se impressiona com as ideias de Basquiat a ponto de se tornarem grandes parceiros. Warhol com as obras em serigrafia, pinta imagens de artistas em cores contrastantes, em referência à linguagem das propagandas. A repetição é o mote do artista para ironizar as novas maneiras de veiculação das imagens que, de tanto editadas, transformadas e exaustivamente repetidas, banalizam seu significado enquanto elemento simbólico.
Os dois artistas trocaram técnicas e assinaram trabalhos juntos por volta dos anos 1984, nos quais misturam as técnicas de pintura e serigrafia, bem como as cores e traços de cada um.
Em Thin Lips (1984-1985), o desenho de uma cabeça com informações de despesas, receita e déficit tem sombreamento característico de Warhol, ao passo que os olhos alongados e brilhantes, além da letra fina de Basquiat que escreve “thin lips” destacam claramente a fusão da linguagem dos dois artistas. O caráter político sempre presente no trabalho de ambos, em “thin lips” se refere às políticas econômicas adotadas por Ronald Regan, presidente dos Estados Unidos nos anos 80.
Essa rede de relacionamentos que Basquiat criou, o levou a trabalhar com Larry Gagosian, um dos galeristas e negociadores de arte mais renomados do país, além de ter a crítica especializada com olhos abertos aos seus movimentos, coroando esse processo na capa da revista em 1985.
Três anos depois, porém, Basquiat morre e encerra sua carreira sendo visto como símbolo de inovação e um radicalismo que encantou e chocou o mundo da arte. Atualmente, sua fama permanece como um ícone de uma época que influenciou o surgimento de várias linguagens da cultura americana.
Victoria Louise é crítica e produtora cultural, formada em Crítica e Curadoria e Gestão Cultural pela PUC-SP
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