Com a escalada da guerra entre Rússia e Ucrânia, os principais museus do país tentam proteger o seu extenso acervo. Pela falta de acesso às rodovias, que foram destruídas ou já estão dominadas, resta aos funcionários e artistas criarem alternativas que possam suportar os ataques. Conforme aumentam as tensões e a falta de negociação, surge a possibilidade de que novos bombardeios ocorram nas proximidades, afetando diretamente a estrutura dos prédios e atingindo praças com obras que representam a liberdade ucraniana.
O avanço do cerco russo em torno da capital Lviv (a qual detém patrimônios culturais) submete-a a condições precárias: escassez de remédios, falta de alimentos e um sistema de saúde praticamente paralisado. Porém, mesmo com toda insalubridade, uma parcela da população nega-se a sair da capital. Entre as ruas desérticas da cidade, os ucranianos que ficaram, seja pelo combate ou por escolha, resistem em permanecer por algo que caminha nas entrelinhas de qualquer sociedade, a preservação cultural.
Após a conflagração dos primeiros ataques ao país, foi formada uma megaoperação entre as galerias, museus e igrejas com o objetivo de auxiliar na remoção das obras e na proteção de prédios históricos. Entre os principais propagadores da operação está o Museu Nacional de Lviv, fundado pelo arcebispo católico Andrei Sheptytsky em 1905, sendo considerado um dos museus mais importantes da Ucrânia. Inicialmente, com cerca de 10 mil peças doadas por seu fundador, o acervo é formado por esculturas populares de arte sacra e uma série de gravuras ucranianas datadas do século XVII e XVIII; atualmente, o museu detém 180 mil peças.
Hoje o museu se encontra friamente vazio, pouco sobrou entre os seus longos corredores neoclássicos, como exemplo, uma escultura descansa perto de uma coluna, por causa do seu peso, ela não poderá ser transferida para o subsolo. O seu atual diretor, Ihor Kozhan, diz aliviado que a maioria do acervo se encontra protegido de alguma maneira. Mas há dificuldade quanto à questão climática dos esconderijos, já que diversas obras precisam estar em salas climatizadas para não deteriorarem. Segundo o diretor, é pouco provável que as obras aguentem um ataque direto ao museu, já que os bunkers são datados e não projetados para aguentar bombas modernas.
“Espero que possamos trazer as peças de volta em breve. (…) É difícil para mim estar aqui nestas salas e corredores vazios. Poderíamos ter caminhado o dia inteiro aqui juntos olhando nossa história e nossa arte.” – Ihor Kozhan
Outro museu que está na linha de frente em manter a preservação do seu acervo é o Museu da Liberdade de Kiev, fundado em 2014 como homenagem à vitória dos protestos civis conhecido como “Euromaidan”, que durou 93 dias de intensos conflitos e mortes para a derrubada do presidente Víktor Yanukóvytch. O museu atualmente é composto por uma coleção com cerca de 4 mil objetos associados às lutas pró-democracia da Ucrânia. Como alternativa para preservar as obras longe de qualquer possível ataque, o diretor do museu, Ihor Poshyvailo, já estava solicitando a retirada do acervo para fora do país conforme as ameaças da Rússia aumentavam, mas não houve tempo suficiente para serem aprovadas. Mover um grande acervo para o exterior não é algo simples de se fazer, requer diversas etapas de preparo e logística; por serem museus estaduais, necessitam também da autorização do governo, algo que é difícil de conseguir na atual situação de guerra. Enquanto isso, os funcionários do museu já estão recorrendo a outras alternativas, como instalações de armazenamento na capital para preservar o acervo, mas ainda sem previsão de execução.
A lista de instituições que lutam para manter a cultura ucraniana a salvo é extensa. Também em Kiev, O Museu Nacional da História da Ucrânia, fundado em 1991, sendo um dos maiores em acervo, conta com mais de 800 mil peças em risco. O Museu de Belas Artes de Odesa, fundado em 1899, com mais de 10 mil peças, está cercado com arames farpados e funcionários dormindo nos porões, com as obras de arte ao seu lado; diz a diretora do museu Oleksandra Kovalchuk.
Em âmbito internacional, o Museu Nacional de Varsóvia, localizado na Polônia, está unindo esforços para abrigar famílias dos funcionários da Galeria Nacional de Arte de Lviv. O museu tem um programa de apoio para ex-funcionários, e está se preparando para receber as famílias em Varsóvia. Já o Museu da Infância em Guerra, localizado na Bósnia e Herzegovina, está tentando recuperar obras que estavam percorrendo a Ucrânia em uma exposição relacionada à anexação da Criméia pela Rússia em 2014. Cerca de 40 peças foram recuperadas, porém cerca de 300 ainda permanecem em Kiev.
“Acredito que faria sentido para eles destruir obras de arte que demonstrem nosso patrimônio ucraniano, que mostram que nossa história é diferente, que somos diferentes e não russos. Para essa arte, não haverá lugar na Federação Russa. Ela deixará de existir.” – Oleksandra Kovalchuk
Além da situação fragilizada dos museus, a Ucrânia abriga diversos tipos de igrejas (por exemplo, as frágeis igrejas de madeira, chamadas de tserkvas) e catedrais no estilo bizantino, com as icônicas abóbadas douradas. Há uma força tarefa para proteger as igrejas conforme possível, tampando os extensos vitrais e protegendo o seu redor com barricadas. Como exemplo, a Catedral Armênia da Assunção de Maria, que fica em Lviv, datada do século XIV, já perdeu os seus vitrais laterais após bombardeios ocorridos na Segunda Guerra Mundial, restando somente os vitrais localizados nas partes mais altas e na cúpula.
Como medida urgente, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) tomou a iniciativa de considerar sete locais da Ucrânia como patrimônio mundial. Entre eles a Catedral de Santa Sofia, em Kiev, construída no Século XI e todo o centro histórico de Lviv, composto de um castelo e diversas igrejas que remontam ao período medieval. A determinação da UNESCO surgiu como consequência do aumento da violência contra a Ucrânia, tomando medidas legais para evitar possíveis ataques irreparáveis aos monumentos históricos.
Enquanto alguns museus dispõem dos seus próprios bunkers, ou acesso a outras alternativas, as pequenas galerias e artistas independentes dependem uns dos outros. Um dos esforços para proteger a arte contemporânea da Ucrânia está em andamento na cidade de Ivano-Frankivsk, onde um coletivo de artistas transformou um café subterrâneo em um bunker. Anna Potyomkina, curadora que faz parte do coletivo, diz que muitos colegas artistas se questionam sobre o seu papel na guerra: “Não seria mais sensato pegar em armas? A arte como arma não age muito devagar?” Para ela, proteger o patrimônio cultural de galerias e museus também é um ato de resistência.
“No momento, isso é tudo o que podemos fazer. (…) Ninguém é famoso, ninguém é ciumento, a arte de ninguém é mais importante que a de ninguém. Todas as rivalidades e crises existenciais estão suspensas. fazer tudo o que pudermos agora, ou então corremos o risco de perder tudo.” – Anna Potyomkina
Com a tentativa de monitorar as obras caso caiam em domínio russo, alguns museus estão criando um inventário digital. Com o auxílio da digitalização do acervo, será possível rastrear caso a obra seja transportada para outro local. Porém, mesmo com a iniciativa de catalogação, é provável que o Presidente Vladimir Putin deseje apropriar-se das obras do país e levá-las para o solo russo. Tal atitude tem um motivo, já que entre 1920 e 30, período da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), os bolcheviques venderam parte dos tesouros czaristas a outros países, portanto há um comportamento de recuperação histórica. Não obstante, ainda há o risco de as obras saqueadas serem negociadas em mercados paralelos irrastreáveis. Segundo a UNESCO, o mercado ilícito da arte movimenta cerca de US$ 10 bilhões por ano, podendo ser utilizadas como lavagem de dinheiro ou pagamento de propina, dificultando localizar o seu paradeiro.
Avançando pela resistência digital, o Ministério da Transformação Digital da Ucrânia anunciou a fundação de um museu dedicado à arte digital, o Meta História: Museu de Guerra. O seu objetivo será levantar questões sobre a guerra entre a Rússia e a Ucrânia, além de abrir espaço para os artistas comercializarem a sua arte digital com reflexões sobre o tema. Graças a segurança da blockchain, que armazena as obras em servidores e aos tokens não fungíveis (NFTs), os trabalhos serão preservados da destruição e do domínio russo, mantendo à salvo os dados históricos do país. Inicialmente, cada NFT será vendido por 0,15 ETH (ethereum), tendo todo o seu lucro da venda inicial convertido para do Ministério da Transformação Digital, onde serão distribuídos aos esforços de ajuda humanitária da Ucrânia.
As alternativas ucranianas, que se tornaram desesperadas pela falta de tempo, são causadas pelo medo de ver o seu patrimônio ser pulverizado. Conforme o exército russo avança, bombardeando a esmo casas e prédios de valor histórico mundial, o risco permanece. O medo da perda não vem à toa, já que os saques ocorridos pela invasão nazista, na Segunda Guerra Mundial, ameaçaram a cultura do país. A cada dia de conflito, demonstra-se o engajamento que uma civilização tem em resistir pelo bem maior, a luta pela sobrevivência cultural: a criatividade, o estilo de vida e as relações humanas.
Quando uma sociedade inevitavelmente colapsa, o que sobra em totalidade são as suas criações artísticas; que simbolizam e legitimam o seu legado. O combate pela preservação é a tentativa de manter-se como um artefato, não em escombros, ilegível. Segundo o historiador de arte alemão, Aby Warbug¹ , é o empenho de salvar a cultura de se tornar uma “história de fantasma para gente grande”, que nos assombra em desaviso, como um trauma que não cansa em reaparecer. A imagem sobrevivente, que insiste em demonstrar a sua persistência entre as transições históricas, irá caminhar de uma forma ou de outra, seja nos corações dos que lutam ou nos traços remanescentes deixados para trás.
¹WARBUG, Aby. “A imagem sobrevivente: História da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warbug”. Georges Didi-Huberman. Editora Contraponto, 1ª edição, 2013.
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1 Comment
Uma cultura que conseguiu se preservar durante a II Guerra Mundial, está agora a mercê de um ditador, com sensação de ser um guardião da cultura russa e para isso é preciso exterminar o que o ucranianos conservaram como seu passado. Incrível a sensação de valorização de sua própria cultura, protegendo de um genocida e destruidor maior do que os seus antecessores. Um ganancioso.