Desde os registros e evidências mais primordiais, a arte de alguma forma figurou junto à existência humana, sendo certamente das mais antigas formas de expressão. Ao longo de diversos momentos históricos das sociedades ocidentais o envolvimento direto ou indireto com a arte representou ou brindou posições de poder e status social. A proximidade entre aqueles que detinham riquezas ou posições de destaque na sociedade com a arte pareceu inevitável ao longo dos séculos.
O avassalador avanço tecnológico das revoluções industriais na Europa do século XVIII e XIX colocou o lazer no centro da discussão de sociedades que em função das máquinas se tornaram capazes de produzir cada vez mais riquezas, com cada vez menos trabalho humano. O sociólogo e economista americano de ascendência norueguesa Thorstein Veblen formulou no final do século XIX sua “Leisure Class Theory”. Na leitura de Veblen, o progresso tecnológico faria com que os indivíduos oriundos da ascendente burguesia europeia não precisassem trabalhar para buscar sua sobrevivência. Sua ocupação estaria baseada, então, no desfrute do lazer.
Veblen entende que através do consumo os indivíduos pertencentes à classe do lazer poderiam expressar sua superior condição econômica e social. Surge a noção de bem de Veblen, um bem caracterizado pelo consumo conspícuo, que tem na ostentação sua grande razão de ser. Um instrumento de sinalização de pertencimento e status social. Neste contexto, o consumo de arte teria como motivadores o desfrute estético e a afirmação de pertencimento a um estrato social distinto. O economista canadense Benjamin Mandel, evidencia em seu trabalho “Art as an Investment and Conspicuous Consumption Good” a característica de consumo conspícuo presente na compra de obras de arte.
“A arte então passa a ter conotação de instrumento adicional de diversificação de portfólio“
Entretanto, ainda no século XIX, surge a interpretação de que a arte poderia ter um papel outro, além do simples desfrute estético ou da afirmação social. No livro “The History of Impressionism”, o historiador da arte americano John Rewald relata como a arte passou a ser entendida como um valioso instrumento de proteção de patrimônio e conservação de valor na sociedade francesa. Após a Revolução de 1789, a França passou por décadas de instabilidade política e econômica. Visando a proteção contra eventuais manobras econômicas e confiscos monetários, as novas elites francesas passaram a adotar a compra de obras de arte feitas por artistas renomados da época como instrumento de proteção de portfólio. A arte então passa a ter conotação de instrumento adicional de diversificação de portfólio. Diversificar.
Antes mesmo do prêmio Nobel de economia Harry Markowitz elaborar a sua moderna teoria do portfólio, que nos mostra como a diversificação de um portfólio de investimentos é o único almoço grátis existente nas finanças, o escritor espanhol Miguel de Cervantes disse através de Sancho Pança, o fiel escudeiro de Dom Quixote, que não é prudente colocar todos os ovos na mesma cesta. Antônio, o Mercador de Veneza de Shakespeare também fez apelo à prudência da diversificação: “Sou grato à minha sorte; mas não confio nunca os meus haveres a um só lugar e a um barco, simplesmente nem depende o que tenho dos azares do corrente ano, apenas. Não me deixam triste, por conseguinte, as minhas cargas”.
A diversificação de um portfólio não depende apenas da quantidade de ativos que nele existem; é absolutamente possível ter vários ativos diferentes em um portfólio de investimentos sem que isso resulte em ganho efetivo de diversificação. Um bom portfólio de ativos é como um time de futebol: não basta apenas ter bons atacantes, é de bom tom também preocupar-se com a qualidade dos zagueiros e do goleiro. No esporte bretão, um time escalado apenas com Messis e Cristianos Ronaldos deve ter sérias dificuldades ao enfrentar um time equilibrado entre ataque e defesa. Não é distinto no universo das finanças. A diferença é que na composição de um portfólio, é a maneira com que os ativos se relacionam que vai determinar se a posição é de ataque ou de defesa. Em termos estatísticos, é preciso checar as correlações.
No trabalho “Ensaios sobre Eficiência Informacional: o Bitcoin e o Mercado da Arte” mostrei como ao longo do século passado, o investimento em arte apresentou baixas correlações com ativos tradicionais como o S&P 500, o índice Dow Jones – os principais índices do mercado de ações americano – e o próprio ouro. Baixas correlações são instrumentos que valem literalmente ouro na composição de um portfólio, pois habilitam o investidor a buscar maiores retornos frente a um mesmo patamar de risco. No dia-a-dia é como se esse ativo com baixa correlação pudesse contribuir para que o portfólio como um todo sofra menos frente às oscilações do mercado. Adicionalmente, a baixa correlação com o ouro, comumente apontado como um ativo ideal para proteção de portfólio, abre espaço para a utilização do investimento em arte como alternativa adicional de proteção.
Em “Essays on Art Economics”, Menconi mostra que nas duas últimas décadas o investimento em arte contemporânea superou o S&P 500 e diversos outros instrumentos tradicionais de investimento“
A Professora de Economia da Arte da FGV-EESP Denise Menconi aprofunda as conclusões acima com dados recentes e resultados ainda mais ricos. Em “Essays on Art Economics”, Menconi mostra que nas duas últimas décadas o investimento em arte contemporânea superou o S&P 500 e diversos outros instrumentos tradicionais de investimento. Por conta das baixas correlações com os ativos tradicionais, a adição de pequenas dotações de investimento em arte (1% de arte contemporânea ou Old Masters) faz com que o investidor já diversificado possa desfrutar de maiores retornos esperados, para um mesmo patamar de risco. No léxico da moderna teoria do portfólio de Harry Markowitz, a fronteira eficiente do investidor é otimizada devido à adição do investimento em arte que provem melhor relação de risco e retorno ao portfólio.
Ao longo do artigo buscou-se mostrar como além do apelo estético e da sinalização de pertencimento social, o colecionismo de arte foi também utilizado ao longo do tempo como instrumento de proteção de patrimônio e conservação de valor frente às oscilações econômicas e sociais. Vimos também como à luz da moderna teoria do portfólio de Harry Markowitz, em virtude das baixas correlações com ativos tradicionais, a adição de pequenas dotações de investimento em arte pode melhorar a relação risco e retorno de um portfólio de investimentos. Convém salientar que devido aos expressivos valores que as obras de arte podem atingir quando transacionadas, apreciar além da beleza estética, mas também o benefício de investimento, pode ser pouco acessível aos investidores pessoa física. No médio prazo, é possível que a tecnologia auxilie na democratização do acesso a esse mercado.
Thierry Chemalle é professor de economia da arte da FGV-EESP. Graduado em ciências sociais pela PUC-SP e pós-graduado e mestre em economia pela FGV-EESP. Escreve sobre economia, finanças, sociedade, arte e cultura.
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