A arte figurativa norte-americana do século XX, que caminhava às margens dos grandes movimentos abstracionistas, ganha destaque na nova exposição da Pinacoteca de São Paulo. Percorrer a mostra é acompanhar o desenvolvimento urbano nos Estados Unidos em seus diversos aspectos, desde o crescimento industrial até o cotidiano dos habitantes na rotina intensa do trabalho, mas também o lazer e as relações interpessoais.
Inaugurada em 27 de agosto, “Pelas ruas: vida moderna e experiências urbanas na arte dos Estados Unidos. 1893-1976” reúne 150 obras, sendo 80 pinturas e gravuras, e o restante composto por fotografias, vídeo e projeção. A curadoria é assinada por Valéria Piccoli, curadora-chefe da Pinacoteca; Fernanda Pitta, professora assistente do MAC-USP e ex-curadora da Pina, e Taylor L. Poulin, curadora-assistente da Terra Foundation.
A equipe curatorial expressou um atento olhar à representatividade na mostra, ao apresentar obras de importantes artistas mulheres, além de incluir narrativa indígena e dos movimentos negro e feminista. É uma exposição que não foge, portanto, da responsabilidade de tratar temas políticos sensíveis como a segregação racial e sexismo inegáveis na história da sociedade norte-americana.
Foram movimentadas 16 grandes instituições norte-americanas para o empréstimo das obras como Whitney Museum of American Art, Los Angeles County Museum of Art, Terra Foundation for American Art, entre outros. É a primeira vez, inclusive, que a obra de um dos artistas, Charles White, aterriza em solo brasileiro. Sua série de posters “Wanted Poster Series #14”, de 1970, é uma das obras mais impactantes da mostra por se referir às práticas escravistas do século XIX como a recompensa para a devolução de escravizados fugidos.
Nascido no México, José Clemente Orozco, artista reconhecido pelo desenvolvimento do muralismo mexicano ao lado de Diego Rivera está presente com uma pintura que retrata edifícios típicos americanos e uma rua pouco iluminada onde as identidades dos passantes são inconclusas, como grandes sombras. Sua pintura traz um aspecto soturno e geométrico também identificável na obra de Edward Hopper, mas Orozco trabalha um movimento de linhas na parte inferior da tela onde se deslocam os personagens. É uma obra que instiga e evoca reflexões diferentes em quem observa.
No campo da fotografia, as obras de Dorothea Lange e os irmãos Isaac e Raphael Sayer tratam de questões sociais e mostram imagens expressivas da fachadas de agências de emprego durante a Grande Depressão como a de Howard Street.
A fotógrafa Barbara Crane, por outro lado, registra na série “People of the North Portal” (1970-71), feita em gelatina de prata, uma variedade de reações e expressões faciais ao capturar a saída dos visitantes do Museu de Ciência e Indústria de Chicago na década de 70; crianças e adultos, a maioria dos retratados carrega um ar de espontânea leveza.
Do mesmo modo que os núcleos agrupam obras que dialogam pela semelhança, o oposto também se faz presente. O contraste entre diferentes linguagens como fotografia e pintura, ou grandes e pequenos formatos, aliada com traços narrativos como a sobriedade de Edward Hopper seguida pela vivacidade de Ernest Crishlow, são decisões que elevam as obras além de seu efeito individual e estimulam novos olhares a partir da contraposição.
A presença de Andy Warhol e Edward Hopper, ainda que sejam os artistas mais conhecidos, não ofuscam obras de artistas menos conhecidos no cenário brasileiro, mas dialogam de forma perfeitamente harmônica entre si. A curadoria pensou em Andy Warhol na lógica contrária da pop art e das referências da cultura de massa que o tornou mundialmente famoso e selecionou uma gravura que aborda a violência policial no Alabama em 1975. Já Edward Hopper aparece com duas obras, o óleo sobre tela “Dawn in Pennsylvania” (1942) em que os conhecidos vazio e contraste de luz das obras do artista predominam na estação de trem e a água-forte “Night Shadows” (1921) que apresenta um passante caminhando na rua visto em ângulo plongée, sugerindo a opressão da metrópole.
Perceber a mostra através da estética modernista torna visíveis alguns paralelos com a linguagem brasileira. A obra “Illinois Central” (1927) de George Josimovich explora a geometria e a sobreposição dos elementos demonstrando o crescimento vertical das cidades, o que nos remete aos cenários urbanos de Tarsila do Amaral da Fase Pau-Brasil (1924) como o Vale do Anhangabaú ou a Estrada de Ferro do Rio de Janeiro.
O artista Paul Cadmus aparece com a obra Shore Leave (1933), em que seus personagens são dotados de sensualidade e formas quase escultóricas, próxima às telas do pintor brasileiro Di Cavalcanti como em Carnaval (década de 1920) ou Samba (1925).
A organização da mostra ocupa sete salas do primeiro andar com 7 núcleos que caminham dos anos 1893, ano do bicentenário dos Estados Unidos e em seguida, acompanhamos o desenvolvimento elétrico e arquitetônico, para chegar nas próximas salas que exploram o impacto desse crescimento urbano nas relações pessoais onde o trabalho e o deslocamento entre pontos da cidade ditam o ritmo da vida de seus habitantes. Ao fim, chegamos em trabalhos políticos da década de 60 e 70 e nos movimentos de contracultura que reivindicam direitos sociais e novas formas de convivência.
A mostra fica em cartaz até janeiro de 2023 e é possível conferir a visitação na Agenda Artsoul.
Victoria Louise é jornalista, formada em Crítica e Curadoria da Arte e Gestão Cultural pela PUC-SP.
Gostou desta matéria? Leia também:
Temporada de projetos: o papel do Paço das Artes na difusão da nova arte contemporânea brasileira