O cinema tem desempenhado um papel essencial na forma como revisitamos e compreendemos grandes nomes da história da arte. Para além de narrar obras e biografias, os documentários e produções dedicados a artistas oferecem recortes singulares de suas trajetórias, explorando dilemas pessoais, contextos políticos e as escolhas não apenas estéticas que moldaram seus trabalhos. Para o grande público, assistir a esses filmes pode significar adentrar atmosferas, sensibilidades e perspectivas que ajudam a enxergar a arte com novas camadas de significado. Essas produções permitem que mergulhemos no contexto humano por trás dos pincéis e esculturas.
Entre as estreias recentes, dois documentários merecem atenção especial: “Pablo Picasso – Um rebelde em Paris” e a produção dedicada à multifacetada “Niki de Saint Phalle”.
Dirigido por Simona Risi, o documentário revisita a vida de Picasso a partir de sua relação com Paris, cidade onde consolidou sua obra e experimentou alguns de seus períodos mais férteis. A narrativa equilibra momentos íntimos com a análise de obras emblemáticas, mostrando como a capital francesa foi combustível para sua rebeldia criativa. O filme busca atualizar a figura de Picasso, apresentando um corpo atravessado por inquietações políticas e afetivas.
O documentário se constrói como um retrato multifacetado do artista, recusando a linearidade do enredo para enfatizar os trânsitos presentes em sua trajetória. Mostra como Paris foi um espaço de contrastes em que o pintor, imigrante e estrangeiro, enfrentou preconceitos e encontrou inspiração nos movimentos anarquistas, no universo do circo e na efervescência cultural de Montmartre. A direção de Risi sobrepõe arquivos visuais, leituras de cartas e entrevistas com especialistas para criar uma narrativa que extrapola a pura celebração da obra, explorando as contradições de uma personalidade marcada pela generosidade e pelo despotismo.
A densidade está justamente no desestabilizar do mito de Picasso, trazendo à tona as fissuras entre o homem e o artista. A alternância entre registros do Museu Picasso e o olhar sobre os diferentes “papéis” que ele desempenhou — o anarquista, o estrangeiro, o provocador — evidencia a complexidade de uma figura que transcendeu sua época mas nos apresenta dilemas éticos e pessoais ainda atuais. Embora a repetição de algumas imagens e recursos narrativos possa sugerir familiaridade com outros documentários de arte, a obra ganha relevância ao sustentar uma questão fundamental: até que ponto é possível separar um legado artístico de uma conduta pessoal? A resposta não é oferecida de forma fechada, mas deixada em aberto como um incômodo necessário.
Onde assistir em São Paulo: O filme estreou no Brasil dia 11 de setembro de 2025. Atualmente em exibição pelo CineSesc e Circuito SPCine no CCSP. É recomendável confirmar programação on-line dessas salas.
Conhecida por sua ousadia e por obras monumentais que desafiaram convenções de gênero e poder, Niki de Saint Phalle ganha um documentário que entrelaça registros raros, entrevistas e imagens de sua produção ainda em ateliê. A direção aposta em um tom intimista, desvendando não apenas a artista vibrante que criou as famosas esculturas “NANAS”, mas simultaneamente a mulher que transformou a violência em uma outra coisa mais potente. O filme destaca como Niki transitou entre pinturas, esculturas e performances, sempre borrando os limites entre arte e vida.
O longa concentra-se em fases decisivas da vida de Niki de Saint-Phalle, composto com atenção tanto aos traços externos de sua trajetória quanto às marcas psíquicas que definem sua produção artística. A narrativa exibe o peso do contexto político – o macarthismo nos Estados Unidos – e do contexto pessoal – os traumas de infância – como forças de opressão que influenciaram seus caminhos mas também espelharam e desencadearam em mecanismos de fuga urgentes e singulares. A escolha de ambientar parte da história entre flashbacks e ataques de pânico permite ao espectador vivenciar a instabilidade emocional de Niki, não como artifício decorativo mas como elemento estrutural da dramatização de sua vocação: a arte se apresenta como espaço de cura e de reinvenção.
Na dimensão estética e de performance cinematográfica, Niki destaca-se por subverter expectativas. A atuação de Charlotte Le Bon equilibra fragilidade e força, especialmente nos momentos em que o filme precisa traduzir o interior de Saint-Phalle – suas recaídas, sua dúvida, sua dor – tornando palpável aquilo que muitas vezes ficaria apenas implícito. Assim, a direção de Sallette parece o tempo inteiro se equilibrar na tensão entre o que é visível (a obra, os cenários, as relações externas) e o que permanece subterrâneo (os fantasmas, a memória, o corpo que sofre).
Onde assistir em São Paulo: O filme estreou no Brasil dia 7 de agosto de 2025 e foi exibido pelo CineSesc, pela Reserva Cultural e outras salas de cinema. Atualmente disponível nas plataformas de streaming Reserva Imovision e PrimeVideo.
Gostou desta matéria? Leia também:
A cidade em linhas retas: um roteiro pelas casas que desenharam o modernismo em São Paulo