Em 1909, na cidade de Japaratuba, Sergipe, nasce Arthur Bispo do Rosário. Batizado com o nome carregado de referências católicas, terá toda sua trajetória de vida interpelada pelas influências religiosas, determinantes nos rumos e ecos de sua vida.
O início de sua história é nebuloso para os pesquisadores, sabemos mais informações a partir de 1926, quando vem ao Rio de Janeiro, e se alista na marinha de guerra e permanece por nove anos. Mesmo após sair da marinha, mantém-se na capital carioca realizando os mais diversos trabalhos.
Em 1936 ele sofre um acidente, no qual um bonde o atropela deixando uma sequela permanente em seu pé, que o torna manco. O incidente o afasta de uma paixão que nutriu durante seus anos na marinha: o boxe.
A vida de Bispo do Rosário muda drasticamente quando ele tem uma revelação, que descreve em um estandarte: na noite do dia 22 de dezembro de 1938 ele se vê descendo do céu acompanhado por sete anjos. Ele caminha então na madrugada deserta até o mosteiro de São Bento, fazendo a peregrinação de Botafogo ao centro do Rio de Janeiro, dizendo ser aquele que veio julgar os vivos e os mortos. É dado como louco e encaminhado para o sanatório da Praia Vermelha e então transferido para a colônia Juliano Moreira.
Eu vim. Arthur Bispo do Rosário, s.d. Imagem: Giovanna Gregório.
Eu vim é a vestimenta em que ele tece e descreve o evento que determinará seu destino. Aqui já entramos em contato com o que será sua linguagem mobilizadora, o bordado.
Diagnosticado como portador de esquizofrenia paranoide, Bispo foi alojado no pavilhão 10 do Núcleo Ulisses Vianna, destinado aos pacientes mais agressivos e agitados. De lá foi liberado algumas vezes e fugiu outras tantas. Passou por um confinamento solitário em 1964. Durante o isolamento relatou ter ouvido mais vozes e revelações e decide então, voluntariamente, se trancar em uma das celas para bordar seus estandartes, permanecendo obstinado nesta missão por sete anos.
Simultaneamente, diversas ações no sentido de fertilizar um espaço de cultura e estimular a arte no ambiente psiquiátrico efervesciam. Como exemplo, no final dos anos 1940 é criada a seção terapêutica ocupacional pela psiquiatra ativista Nise da Silveira. Já em 1947 foi organizada uma exposição de pintura pelo Centro Psiquiátrico Nacional dentre outras atividades artísticas que pulverizavam pelo ciclo de saúde mental que expunham a positiva e emancipadora articulação entre arte e terapia.
Em 1980, o jornalista Samuel Wainer Filho conduz no programa Fantástico, da TV Globo, a partir da Colônia Juliano Moreira, uma matéria que denuncia a precariedade da assistência psiquiátrica no país e nela, Bispo do Rosário e seus trabalhos aparecem. Dois anos depois, já sob o interesse de parte da mídia e de críticos de arte, seu trabalho integra Margem da Vida, bem sucedida exposição organizada pelo crítico Frederico Morais, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Esta foi a única mostra em que participou em vida.
Apesar de hoje ser situado no campo da arte, Bispo não se entendia enquanto artista, sua afirmação era que tudo o que fazia era mobilizado por sua missão. Sob essa perspectiva, se compreende que todas suas peças constituem uma só obra.
O trabalho abaixo ilustra diversos pontos de sua produção, a relação com o bordado, com o relato, a transformação dos seus mundos e vozes internos em palavras bem como a noção de superação do tempo. É a obra que toma a vida toda para ser elaborada, esta é sua missão e ela não pode ser reduzida.
Uma obra tão importante que demorou 1986 anos para ser escrita. Arthur Bispo do Rosário, s.d. Imagem: Giovanna Gregório.
Seu trabalho era incansável. No filme Prisioneiro da Passagem de Hugo Denizart, nota-se que Bispo mesmo quando dormia sentia-se atormentado, relatando passar dias sem conseguir dormir com o barulho das vozes ditando seus deveres.
Além da sua prática de bordado, que se dava com as linhas desfiadas dos uniformes – geralmente azuis – existe também seu lado duchampiano, elaborando trabalhos com objetos deslocados do seu dia-a-dia e que faziam parte da sua experiência cotidiana, ele os organizava metodicamente e chamava as peças finalizadas de vitrine. Essas elaborações, mais do que simples objetos elevados ao estatuto de arte, são objetos que viram permanentemente itens de memória.
Sem título (objetos). Arthur Bispo do Rosário, s.d. Imagem: Giovanna Gregório
Carrossel. Arthur Bispo do Rosário, s. d. Imagem: Giovanna Gregório.
Com tanta arte latente neste contexto, se tem registro de atividades museais na colônia Juliano Moreira desde 1952. Com os avanços das reformas psiquiátricas e a instituição de práticas de arteterapia, tais atividades vão aos poucos se expandindo. Com a morte de Bispo, sua densa produção ficou alojada no local que foi chamado Museu Nise da Silveira. No ano de 2000, o espaço se entende como responsável por uma missão e muda o nome para Museu Bispo do Rosário (mBRAC), o principal artista do seu acervo, empenhando-se pela preservação, conservação e difusão de sua obra, bem como pela responsabilidade fundamental de preservar e difundir a memória da Colônia Juliano Moreira.
A internação psiquiátrica pela qual Bispo passou, exercia – e exerce – a função de retirar da vivência social pessoas diagnosticadas com transtornos mentais de modo a representarem uma ameaça ao controle social. Dentro da nossa sociedade impõe-se a necessidade de controlar estes e outros corpos historicamente violentados e Bispo representava a maioria deles, era um homem negro, pobre, nordestino e louco. Seu aprisionamento era quase que inevitável.
Pensando nesta função de controle exercida e nas sistemáticas violências, abusos e negligências presentes nos núcleos psiquiátricos, algumas reformas no setor foram eclodindo pelo mundo. No Brasil, durante os anos 1980 forma-se o movimento da luta antimanicomial, a proposta síntese é encerrar a política de manicômio e substituí-la por tratamentos comunitários que visassem o encorajamento de um maior exercício da cidadania desses pacientes, fortalecendo seus vínculos e não o isolamento.
O dia 18 de maio é marcado como dia da luta antimanicomial, pois foi nesta data, em 1987, que grupos favoráveis a práticas antimanicomiais elaboraram a reforma do sistema psiquiátrico brasileiro, uma luta que segue viva dado que a reforma não foi completada até hoje.
É nesta data comemorativa, que a Avenida Paulista se torna o epicentro de resistência. Logo em seu começo, cruzando com a Consolação, podemos ver imagens de Bispo do Rosário no Instituto Moreira Salles, em fotografias tiradas por Walter Firmo nos anos 1980 e que compõem a exposição Walter Firmo: no verbo do silêncio a síntese do grito. Mais adiante, concentrado na frente do MASP, há centenas de apoiadores da luta antimanicomial clamando por liberdade e garantia de direitos, e seguindo por mais duas estações da avenida, encontramos o centro Itaú Cultural que inaugura amostra sobre Arthur Bispo do Rosário.
Bispo do Rosário – Eu vim: aparição, impregnação e impacto foi concebida e idealizada pela instituição que a recebe juntamente aos curadores do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea, Ricardo Resende e Diana Kolker.
Ao adentrar o prédio, o público o encontra tomado por mandalas, objetos muito significativos devido sua presença em tratamentos terapêuticos, principalmente com pacientes esquizofrênicos, assim como Bispo.
Vista da exposição. Imagem: Giovanna Gregório.
A curadoria reuniu mais de 400 obras e já no primeiro andar fica clara a preocupação em dispor para o público as obras da mesma maneira como Bispo fazia, como vitrine, ocupando o prédio com a exposição da mesma forma com que Bispo ocupou a colônia e o mundo.
Vista da exposição. Imagem: Giovanna Gregório.
A imersão no mundo do artista não é dada apenas por seus métodos expográficos. O espaço recriou as celas em que ele esteve preso e nelas há a reprodução de performances realizadas na colônia. A sensação é de frio, claustrofobia e desespero.
A noção de que a obra de Bispo possui potencial criador, sugerido pela curadoria, aparece nas tantas outras obras de artistas presentes na mostra e que são propulsionados de alguma forma pelo seu trabalho. Dessa maneira, a exposição propõe diálogos extremamente potentes com a arte contemporânea, articulando sua presença com a de Rosana Paulino, Jaime Lauriano e Maxwell Alexandre bem como a de artistas modernos como Flávio de Carvalho, Abraham Palatnik e Geraldo de Barros, fazendo-nos refletir sobre a concepção de arte e a pretensa linearidade narrativa da história da arte.
Éramos as cinzas (série Pardo é papel). Maxwell Alexandre, 2018. Imagem: Giovanna Gregório.
A saúde mental é indissociável de sua produção, a exposição é bem sucedida em não reduzir sua produção artística a sua condição mental e nem esteriliza sua condição de sua arte; o debate ético e estético são intensos na mesma medida.
Quem for visitar a exposição entrará em contato com questões estéticas e éticas que com sensibilidade costuram o mundo de Bispo do Rosário e evidenciam seus ecos em outras produções e nas lutas emancipatórias.
Para além das obras do Bispo e de artistas modernos e contemporâneos, o primeiro subsolo é um andar dedicado a abordar produções em instituições psiquiátricas, contando com obras inclusive do Museu de Imagens do Inconsciente Nise da Silveira – Engenho de Dentro.
Na programação paralela, em consonância com a exposição, o Itaú Cultural colocou em debate o papel da arte na saúde mental. Com o seminário Cultura, saúde mental e bem-estar, realizou fóruns com pessoas dos campos envolvidos que refletem sobre o tema.
O Educativo do Itaú Cultural além de visitas guiadas presencial e virtualmente propôs o Ateliê Livre: bordado poético uma oficina de bordado inspirada na exposição e na prática de Bispo, um importante exercício de conexão para o público.
Ele organizou, costurou e elaborou novos universos em um que não o acolheu, a dívida com Arthur Bispo do Rosário – que passou a vida enclausurado – é a dívida histórica e social com milhões de pessoas que tiveram sua cidadania cerceada por uma política higienista, e que ainda se faz presente nos presídios e nas clínicas. A mostra é fundamental tanto para a carreira de Bispo como com esse compromisso tão atrasado quanto urgente de libertação e produção de memória com aqueles que sofreram os traumas da violência institucional que são produzidos até hoje.
São ações como a exposição que dão visibilidade a temas silenciados e que visam transformar o imaginário social a respeito da loucura na busca de garantir direito à vida, daqueles que não atendem às expectativas da normalidade social.
A missão de Arthur Bispo do Rosário na terra se encerrou aos 80 anos, morreu em 1989 em decorrência de um infarto, tendo passado a vida bordando seu mundo particular e registrando o nome de pessoas queridas, é uma feliz coincidência que em sua certidão de óbito tenha a frase Deixa bens? Ignorado. Bispo não se preocupou em deixar bens, mas deixou para sempre o legado de sua passagem pela terra.
Giovanna Gregório é graduanda em Arte: História, Critica e Curadoria pela PUC-SP. Pesquisadora e crítica independente.
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