Gastroperformance de Simone Mattar no evento de lançamento do Artsoul. Foto: Artsoul
Simone Mattar é uma artista que não se encaixa em categorias acadêmicas pré-determinadas e, certamente, o circuito artístico ainda trabalha com certo esforço para incorporá-la como uma ativadora de diferentes formatos do que seria arte, do que denominaria um artista profissional e, claro, de reflexões (radicais) sobre a função social da arte. Simone busca sempre desconstruir estereótipos e exercitar experimentação com as linguagens artísticas: expandindo, aglutinando e reconfigurando os formatos dessa produção.
Formada em Design e Arquitetura, a artista trabalha principalmente, mas não só, a partir da gastroperformance, no qual realiza um ativismo sobre e a partir dos alimentos, sobre a especificidade do ato de comer e suas práticas e possibilidades de fomentar um pensamento crítico e construtivo a partir dessa ação. Seu interesse em alimentação vem desde a infância e a gastroperformance é resultado da confluência de diferentes linguagens, tais como a instalação, performance, objeto, entre outras, que se integram, dificultando uma rotulação simplista do que realiza.
Essa premissa e forma de atuar, aponta para uma atitude de provocação. Seu alvo é a proposição de uma experiência humana, que reflita sobre a própria existência, convidando o visitante a participar e experimentar seus próprios sentidos ao mesmo tempo que reflete sobre a experiência.
A abordagem criativa de Simone cruza disciplinas, ultrapassa limites e borra as fronteiras impostas pelo mundo acadêmico e o mercado que se atrela ao circuito artístico-cultural. A artista parte de um amplo catálogo de referências, que se volta a trabalhos desenvolvidos por: Pina Bausch, Tadeusz Kantor, Antonin Artaud e John Cage. Eles mesmos experimentadores que testaram limites disciplinares. Trabalho transdisciplinar é também aquele que Simone realiza com o coletivo londrino, Food of War, formado por um grupo de artistas de diferentes nacionalidades e que articula relações entre guerras e comida.
Como ações de destaque em sua trajetória, Simone aponta para a importância do projeto Como Penso Como (2013), em sua primeira edição projetada para o SESC Pompéia (São Paulo), na qual misturou instalações, projetos multimídia e experiências sensoriais, elaborados a partir da pesquisa sobre relações entre história e práticas de cultura alimentar no Brasil. Apoiado pelo SESC, Como Penso Como foi um projeto inovador, que propôs um pensamento sobre a gastronomia como forma de expressão cultural e artística e que se desdobrou na articulação entre vários campos – o design, sonoridades, provocações olfativas e gastronômicas, algo pouco exercitado como forma artística, resultando em novas concepções na compreensão sobre arte, artista e função social de suas ações.
Se a gastronomia dos grandes chefs é pensada como luxo, Simone Mattar busca o contra-fluxo: a gastroperformance, segundo a artista, foge do lugar comum da glamourização, mas se configura como uma oferta, ao seu visitante/participador, de conhecimento, pensamento, contato com seus sentidos e um imersão reflexiva.
Na gastroperformance desenvolvida para um evento da Artsoul, Eu mundo, eu muro, em novembro 2018, a performance alude ao milagre de Santa Luzia, que é considerada pelos católicos como a protetora dos olhos, no qual, após ter os olhos arrancados, eles voltaram a nascer. Olhos que, simbolicamente, representam a capacidade espiritual de captar a realidade, a iluminação espiritual. Partindo de uma poesia, declamada por 6 pessoas, entre eles, refugiados de diferentes culturas e línguas. Três desses performers representam, segundo a artista, “entidades luminosas” e caminharam entre o público, distribuindo “olhos” feitos de chocolate branco, recheados com ganache sabor lavanda.
Nesse processo, o público participa de maneira ativa – atua no desaparecimento do olho, o que poderia ocorrer mais de uma vez -e toma contato com a simbologia do olho de forma sensorial, não apenas visão, mas cheiros, paladar e sonoridades, inserido em um ambiente impregnado de história cultural do ocidente.
Mirtes Marins de Olivera é pesquisadora do PPG Design da Universidade Anhembi Morumbi. Crítica e curadora independente
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