Nos últimos anos os museus brasileiros têm adotado programas cada vez mais populares, no sentido de atrair grandes públicos com exposições blockbuster. Como exemplo, podemos citar o sucesso que foram as exposições Tarsila Popular no MASP, Os Gêmeos na Pinacoteca de São Paulo e Leonardo da Vinci: 500 anos de um gênio no MIS Experience, cada uma atraindo centenas de milhares de pessoas.
Contudo, é necessário reconhecer que a proximidade da grande maioria da população brasileira com a arte, e logo, com os museus, é pontual. O ensino de arte nas escolas é desfasado e sofre a cada ano uma série de desmontes por políticas públicas que não reconhecem o valor da cultura na formação crítica de cada indivíduo.
É justamente por isso que se torna necessário discutir o papel do setor educativo dentro de um museu. Para isso, as educadoras Kelly Santos e Luna Souto e o educador André Almeida compartilharam suas experiências na área.
O primeiro contato de Kelly Santos com a arte educação ocorreu em 2011 no Museu de Arte Sacra de São Paulo. “O MAS teve papel fundante em minha atuação na área, visto que contava com uma equipe bem mesclada e ampla em suas formações. Foi ali que dei meus primeiros passos e, aos poucos, compreendi a relevância que o educativo possui dentro de uma instituição”, afirma a fotógrafa e arte-educadora, nascida em Ferraz de Vasconcelos. Foi através da arte educação que ela sustentou seus últimos dez anos na cidade de São Paulo. Possui formação em História e em Teatro e atualmente atua em seu projeto fotográfico autoral 4º aberto, além de lecionar artes no ensino formal.
Kelly Santos no Sesc Pompeia. Imagem cedida pela entrevistada.
Já André Pereira de Almeida, teve seu primeiro contato com a área no Sesc Campinas, também em 2011. Almeida é graduado em Comunicação Social – Habilitação em Midialogia pela Unicamp. Trabalha como educador de museus há mais de 10 anos, passando por diversas instituições de São Paulo, como Sesc, Sesi, Pinacoteca, Museu do Futebol e MAB Faap. Atualmente atua como Assistente de Coordenação Educativa no Museu da Imagem e do Som. Ele destaca que as primeiras experiências na área já revelaram uma potência criativa:
“O educativo se coloca ao lado da exposição, criando conexões, desdobramentos, atividades e oficinas. São as pessoas que podem ver a arte acontecer de fato, pois presenciam o contato do público com as obras e, a partir deste contato, criam seu próprio trabalho. Durante este estágio, percebi que participar deste processo de finalização do processo artístico – que se inicia nas ideias do(a) artista e termina na participação do público – era algo – para mim – tão potente quanto ser o próprio autor das obras“.
Uma característica comum em muitos profissionais da arte educação é a interdisciplinaridade. Muitos se dedicam a outras áreas ao mesmo tempo em que desenvolvem seus trabalhos, como é o caso de Luna Souto.
“Além de arte-educadora eu busco experimentar e trabalhar com diversas linguagens artísticas e sou mais próxima da escrita. Logo, entendo que ao sempre pensar em como conversar sobre arte de forma educativa com diferentes públicos, também, estou me nutrindo de outros referenciais seja de linguagens, assuntos e experiências, isso me faz ser uma escritora mais atenta. Também, enquanto estudante, sinto também que a área me ajuda a conceber os conhecimentos de maneira mais interdisciplinar o que eventualmente me favorece”, afirma a educadora.
Luna Souto Ferreira ou Luna Dy Cortes nasceu em São Paulo – Brasil no ano de 1999. É Byxa-travesty preta, moradora da periferia de Taboão da Serra (SP-Brasil), mediadora cultural, escritora, performer, artista-visual e, atualmente, estudante de Letras pela USP. Publicou o seu livro “Mem(orais): poéticas de uma Byxa-travesty preta de cortes” pela editora Urutau em 2019, participou de antologias literárias e já atuou como educadora/mediadora em exposições do Sesc e do MAM – SP.
O educativo desempenha múltiplas funções em uma instituição, como afirma Almeida:
“As funções podem variar de acordo com a instituição. De forma geral, o [núcleo] educativo é o responsável por receber o público – que pode ser escolar ou não – e participar dos desdobramentos inerentes ao contato com as obras expostas e com a própria instituição museal. Este processo pode ser potencializado por jogos, oficinas ou ações poéticas”.
Ou seja, todos os tipos de público, que incluem diversas faixas etárias e classes sociais, passam pelo educativo. Para Santos, a maior atribuição do educativo é também o seu maior desafio:
“Acredito que esse seja nosso maior desafio e, por que não?, principal função do educativo dentro das instituições: desmistificar o espaço museal como algo limitado a um único público/interesse. Museus deveriam ter suas portas cada vez mais escancaradas. Deveriam conter em seu acervo a memória que conversa conosco no plural e na horizontalidade”. A educadora compreende o espaço museal como um campo de disputas, no qual o educativo possui um papel bem definido.
“O chão das exposições são espaços de disputas quanto àquilo que se conta e se vê. Não me interessa colaborar com a manutenção das mesmas narrativas incansavelmente contadas. Nesse sentido, por termos que lidar ainda com uma realidade ultrapassada, acredito ser o educativo a própria brecha para que contemos outras histórias e outras vozes recebam a atenção que foi subtraída”, completa.
Almeida concorda que o educativo exerça um papel de desmistificar o museu, e explica como esse processo se dá na prática:
“Na elaboração de uma exposição – seja ela uma mostra temporária ou o acervo de longa duração – há muitas partes envolvidas, como diretores, curadores e pesquisadores. Todas estas partes saem de cena uma vez que a mostra está pronta. Quem completa o processo é o educativo, que vai estar presente durante o contato do público com as obras. Sem o educativo, a exposição é uma conversa de um único sentido, um discurso emitido sem que o receptor tenha voz. Ao abrir o diálogo com o público, o educativo permite que haja múltiplas vozes no museu“.
O educador completa defendendo que o educativo é o principal canal de amplificação da voz do público: “O educativo, em outras palavras, valida institucionalmente a voz do público e, consequentemente, permite que todos e todas se sintam parte daquele espaço“.
Luna Souto. Imagem cedida pela entrevistada.
Souto completa a questão vendo o educativo como um lugar de auto reflexão:
“O educativo colabora a trabalhar a percepção dos públicos para com o mundo, não somente para com a arte. Logo, as estratégias educativas construídas pedagogicamente para conseguir conversar com os públicos e não para os públicos podem colaborar para que os próprios se questionem: o que disso tudo (museu ou mundo) faz sentido para mim? E a partir disso refletir sobre aproximação ou afastamento”.
Desmistificar o museu também é torná-lo mais acessível para diversos públicos. Almeida lembra que os educativos têm sido encarregados dessa função recentemente:
“Os núcleos educativos, em geral, possuem programas permanentes de acessibilidade, voltados tanto para pessoas com deficiência como em vulnerabilidade. Como lidamos diretamente com os variados públicos, a pesquisa sobre educação, acessibilidade, e mesmo os movimentos sociais contemporâneos é constante. Dessa forma, o educativo se mantém sempre em constante diálogo com a sociedade, com o objetivo de receber todos e todas as visitantes de forma inclusiva”.
A própria profissão pode ser entendida como um desafio diário. Todavia, os educadores ressaltam algumas questões estruturais enfrentadas em todos os tipos de instituições que passam.
Souto sintetiza a questão:
“O sucateamento laboral que existe na área como, por exemplo, o desmonte ou redução de diversos educativos, salário incompatível com a carga de trabalho na maioria das instituições e a baixa oferta de vagas. Além disso, o grande elitismo que existe no meio“. E Santos complementa: “As contratações estão cada vez mais precárias, desvalorizadas e poucas foram as vezes que reconheci que era atribuído ao nosso trabalho o valor que, de fato, ele possui”.
André Almeida em visita educativa. Imagem cedida pelo entrevistado.
Com todos os obstáculos enfrentados diariamente, o educativo se faz presente como um organismo vivo dentro de aparelhos culturais de todos os tipos. É através destes profissionais que experiências transformadoras se tornam possíveis, especialmente para aqueles que visitam uma exposição pela primeira vez. Almeida finaliza sua fala contando sobre o que faz valer o trabalho educativo no final:
“O educativo não trabalha buscando uma resposta final para determinada pergunta, mas em uma constante busca por ampliar horizontes. Nesse sentido, o trabalho é muito estimulante, pois há sempre novas referências, das mais diversas áreas. Isso ocorre independente da exposição, seja ela longa ou curta, renomada ou anônima. Durante essas buscas, a profissão permite momentos de conexão profundos. Como a educação não-formal, de forma geral, se baseia em um diálogos e horizontalidade, estas conexões ocorrem tanto com os grupos que visitam quanto com as pessoas com que trabalhamos. Ou seja, há sempre novos territórios a percorrer, seja acompanhando um grupo de crianças e descobrindo novas formas de ver velhas obras de arte, ou seja lendo pesquisadores e acadêmicos apresentados por seus(uas) colegas. Assim, acredito que o educativo pode vivenciar a arte em seu estado mais puro e vivo, pulsando e despertando sensações nos olhos, ouvidos, mãos e mentes dos vários públicos que passam em um museu“.
Diogo Barros é curador, arte educador e crítico, formado em História da Arte, Crítica e Curadoria pela PUC SP.
Os depoimentos foram concedidos via e-mail no mês de março de 2022.