Desde a inauguração, no mês de março, a mostra “Francis Bacon: A Beleza da Carne”, tem sido aclamada não apenas por exibir trabalhos icônicos de um dos mestres da pintura europeia, mas também por convidar o público a uma série de reflexões sobre as condições humanas. É a primeira vez que Bacon é exposto individualmente no Brasil. Com um foco queer sobre sua obra, a exposição integra a programação anual do MASP, que em 2024 se dedica às Histórias da diversidade LGBTQIA+. Reunindo 23 pinturas produzidas entre os anos de 1947 e 1988, a curadoria é de Adriano Pedrosa e Laura Cosendey e assistência de Isabela Ferreira Loures. Os trabalhos apresentados na instituição brasileira vieram de museus como Tate (Inglaterra), MoMA (Nova York), Metropolitan Museum (Nova York), Museum Boijmans van Beuningen (Países Baixos), Museu Tamayo (México), Fondation Beyeler (Suíça), Stedelijk Museum (Países Baixos), entre outros.
Francis Bacon nasceu em Dublin, na Irlanda, em 1909. Foi uma criança com asma, muitas alergias e pouco adepta de atividades físicas, restrição que o colocou em conflito com seu pai, um militar enérgico. Mais tarde, a revelação de sua homossexualidade determinou o rompimento definitivo com a família – foi expulso de casa aos 16 anos, ao ser flagrado experimentando as roupas íntimas de sua mãe. Em Londres, sobreviveu com pequenos trabalhos, uma mesada que recebeu da mãe e alguns furtos. A partir da década de 1930, iniciou sua trajetória como artista.
Durante sua carreira, retratou amigos da boemia e da cena cultural londrina, anônimos que encontrava nas ruas e alguns de seus amantes. Pintava principalmente figuras masculinas, em retratos e nus. Foi fortemente influenciado pelos movimentos expressionista e surrealista (embora negasse ambos os termos) e produziu uma obra carregada de experiências pessoais, mas não estritamente autobiográfica.
Acompanhou diversas mudanças no contexto social britânico, no qual atos sexuais entre pessoas do mesmo sexo eram ilegais até 1967. Misturando excitação e violência, reuniu temas como a religiosidade e o erótico, chegando a um modo próprio de trazer vigor à carnalidade. Em 1922, sua asma crônica se tornou mais grave. Foi internado na Espanha, onde visitava um de seus amantes, e faleceu aos 82 anos, em Madri.
No MASP, suas obras são dispostas sem floreios: a expografia simples permite que a magnitude das pinceladas fale por si só. São paredes brancas e verdes que dão fundo à grandiosidade das imagens, em meio a paredes laterais com mais obras e algumas frases importantes de sua carreira.
“A beleza da carne” sugere o fascínio do pintor com o corpo humano, mas não só. O subtítulo surge de uma fala de Bacon (reproduzida na parede da primeira sala) em entrevista ao crítico de arte David Sylvester, em 1966. Na ocasião, ele expressava sua admiração pela beleza das peças penduradas em açougues: “Quando você entra em um açougue, você vê a beleza da carne, como a carne pode ser bonita, mas quando você pensa nisso, também pensa em todo o horror da vida, de um ser vivo vivendo de outro, o padrão natural da vida”.
Ao apresentar, logo na entrada do espaço, a dualidade observada por Bacon, a mostra prepara o público para as mais de vinte telas que aparecem em sequência. Tratam-se de pinceladas cheias de cargas emocionais, nas quais a beleza e a angústia, a vida e a morte, a sedução e a destruição ecoam as profundezas da humanidade e provocam nosso inconsciente.
Em seus trabalhos, algumas expressões aparecem de forma marcante, dentre elas, o grito. “Viemos ao mundo com um grito e muitas vezes também morremos com um grito. Talvez o grito seja o símbolo mais direto da condição humana”, afirmou Bacon em 1992. O efeito provocado pela boca aberta entregava a visceralidade que o artista procurava, o que o instigou a estudar essa parte do corpo. Em seu ateliê, haviam livros de medicina sobre patologias bucais para que ele usasse as imagens como referência. Também havia registros do fotógrafo John Deakin, que o artista encomendava para pintar, já que não gostava de produzir a partir de modelos vivos.
Uma das principais características da obra de Francis Bacon é sua capacidade de transcender a estética e penetrar nas profundezas da psique humana. Com figuras distorcidas e contorcidas, ele parece capturar não somente a forma física, mas também as emoções cruas e primordiais que pulsam sob a existência. É possível sentir angústia, solidão, desejo e vulnerabilidade ao mesmo tempo. Rostos desfigurados e corpos fragmentados encaram o visitante com um olhar inquietante, desafiando-o a confrontar os próprios medos e anseios. Em meio ao caos e à carnalidade das composições de Bacon, encontramos uma beleza estranha e inquietante.
Como um homem queer, Bacon precisou passar pelas normas típicas do ambiente conservador em que foi criado, na Irlanda pré-guerra. Como resposta a isso, subverteu ícones religiosos em muitas de suas telas, como os crucifixos ou a própria figura do papa. Ele questionava a autoridade de líderes da Igreja Católica e seus valores, dando foco à questão da repressão à homossexualidade, que mais lhe atingia.
Além dos traumas e da violência sofrida em sua vida, o amor também serviu como inspiração para diversos quadros de Bacon. Em 1962, na véspera da abertura de sua exposição na Tate Gallery, em Londres, ele recebeu a notícia de que seu antigo amante, Peter Lacy, havia morrido. Em sua homenagem, pintou Study for Three Heads (Estudo para três cabeças), obra em que o autorretrato do artista é ladeado por retratos do companheiro, eternizando o forte vínculo entre os dois. Posteriormente, Bacon afirmou que Peter teria sido o grande amor de sua vida.
Anos depois, na antevéspera de sua mostra no Grand Palais em Paris, George Dyer, o então parceiro de Bacon, sofreu uma overdose de medicamentos e bebidas e morreu no quarto do hotel onde os dois se hospedavam. O artista também retratou Dyer em muitas de suas pinturas, dedicando-as ao seu amor. Essa era uma das formas como Bacon lidava com o luto.
A última fase da produção de Bacon, no final de 1980, foi marcada pela representação de corpos em pedaços, caracterizados por uma musculatura forte. Ele distorcia os pedaços de carne e dava novos contornos à sua matéria carnal. Ele promovia uma ruptura com os padrões estabelecidos na época e desafiava os paradigmas do mundo da arte ocidental.
Em cartaz até 27 de julho, a exposição no MASP é uma oportunidade única para conhecer a profundidade de Francis Bacon, suas pinturas e inquietações.
Serviço
Exposição: Francis Bacon: A Beleza da Carne
MASP – Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand
Curadoria: Adriano Pedrosa e Laura Cosendey
Assistente de curadoria: Isabela Ferreira Loures
Visitação: 27 de março a 27 de julho
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