À beira do mar, duas mulheres de pele retinta estão sentadas. Uma vestida com um pareô florido e camisa regata toma sol. A outra vestida com uma túnica de mangas compridas, que cobre o corpo até o pescoço, senta-se de costas para o mar e tem um olhar desconfiado. A cena de um colorido vibrante foi pintada pelo francês Paul Gauguin (1858–1903) em “Mulheres Taitianas na Praia” (1891). A pintura faz parte do acervo do museu francês d’Orsay. No entanto, quem estiver em São Paulo terá a chance de vê-la ao vivo na exposição “Paul Gauguin: O outro e eu”, em cartaz no Museu de Arte de São Paulo (MASP), até 06 de agosto.
É raro, no Brasil, uma instituição conseguir montar uma exposição autoral com pinturas icônicas de um artista estrangeiro reconhecido mundialmente. O mais comum são mostras empacotadas, prontas para rodar alguns museus da América Latina, com obras nem sempre icônicas de seus autores. A individual de Gauguin no MASP já se destaca pelo esforço da curadoria em reunir, em um projeto institucional, importantes pinturas de Gauguin vindas de acervos internacionais.
“Esse é o resultado de um trabalho contínuo do museu em estreitar laços com instituições internacionais”, explica Laura Condesey, curadora-assistente do MASP, ao Artsoul. A política de “contra-empréstimo” foi uma das ações para conseguir a vinda de obras de museus como d’Orsay (Paris, França), Metropolitan Museum of Art (Nova York, EUA), National Gallery e Tate (ambas em Londres, Reino Unido).
“Em nossa coleção, temos obras fundamentais de nomes como Van Gogh, Monet e Picasso, as quais são frequentemente solicitadas para exposições internacionais. Através dessa colaboração com nosso acervo, conseguimos estabelecer uma política de reciprocidade de empréstimos, trazendo para nossas mostras, trabalhos que raramente saem das paredes dessas instituições”, destaca.
Quem visitar a exposição verá 21 pinturas e 19 gravuras. Entre as pinturas estão, além de “Mulheres Taitianas na Praia”, “Faa Iheihe” (1898), do acervo da Tate; “Duas Mulheres Taitianas” (1899), do Metropolitan, “Autorretrato (perto do Gólgota)” (1896) e “Pobre pescador” (1896), que fazem parte do acervo do MASP. “Esta é uma oportunidade de atualizar o debate sobre essas obras do nosso acervo e as narrativas sobre Gauguin em diálogo com outras coleções”, aponta.
O ano de 2023 do MASP é dedicado à produção de artistas indígenas brasileiros e estrangeiros. A individual de Gauguin é a única que foge à regra. Ele é “o outro” na programação do museu. Assim como pintor também era “o outro” em suas expedições ao Taiti no fim do século XIX. “O título da mostra é muito frutífero e permite muitas relações — tanto entre Gauguin e a Polinésia Francesa, quanto entre os artistas que estão sendo expostos e ele. Esse jogo de palavras permite várias leituras”, diz.
A individual é anunciada como uma exposição crítica a Gauguin, mas permite sua apreciação em muitas camadas. No primeiro andar, na sala onde as obras estão expostas, não há um contraponto visual ao seu trabalho. Quem quiser pode se deixar levar pela superfície e deleitar-se, em uma fruição puramente estética, com as cores vibrantes e as composições inventivas das paisagens e personagens taitianas realizadas por Gauguin.
Para aprofundar o debate crítico, o visitante precisa ir além. Deve lembrar da proposta de 2023 do museu brasileiro e se empenhar na leitura dos textos de parede que contextualizam o artista em seu tempo. Se quiser um mergulho de apneia nas profundezas da discussão, vale a pena comprar o catálogo da mostra.
Para quem não conhece a biografia de Gauguin, o crítico de arte britânico Will Gompertz, em seu didático livro “Isto é arte?”, da editora Zahar, apresenta o artista, logo no primeiro parágrafo, como um egocêntrico “voltado apenas para os seus próprios interesses, que deixou mulher e filhos para se divertir com mocinhas nos mares do sul, espalhando seu veneno sifilítico no processo”. Logo, vê-se que sua reputação não é das mais ilibadas.
Na história da arte europeia, Gauguin se destaca pelo seu distanciamento da estética impressionista de contemporâneos, como Claude Monet e Auguste Renoir, o que lhe rendeu a classificação de pós-impressionista ou simbolista. Em busca de uma paleta mais vibrante e temas desassociados da vida moderna que o transportasse, ao seu entender, a um mundo mais “puro” ou “primitivo”, partiu para a Polinésia Francesa em 1891, estabelecendo-se no Taiti, onde viveu até sua morte em 1903.
A principal crítica sobre seu trabalho é a representação do Taiti, em uma visão branca e europeia, como um lugar exótico e a erotização dos corpos femininos das mulheres locais. A pesquisadora americana Linda Nochlin, em uma análise de 1972 sobre o quadro “Duas mulheres taitianas”, diz que a personagem, segurando uma bandeja na altura dos seios despidos, sugere uma oferta de seu corpo ao espectador como uma fruta madura.
Novos estudos, entretanto, como o da pesquisadora Norma Broude, propõem outra reflexão sobre Gauguin. Em “Duas mulheres” (1901-1902), em que retrata duas mulheres de gerações diferentes encarando seriamente o espectador, Broude analisa que o pintor “consegue transmitir parte do poder e da autoridade que as sociedades matrilineares antigas concediam à linhagem feminina”.
Em seu ensaio no catálogo da mostra brasileira, a pesquisadora não ignora o que chama de “defeitos pessoais e comportamento sexual autocentrado” de Gauguin, porém propõe repensar seu “cancelamento”, compreendendo que ele tinha uma visão de perspectiva feminista sobre a sociedade taitiana. “Para contrapor e reequilibrar os excessos a-históricos dessa cultura, os historiadores da arte do século XXI devem continuar a criar para Gauguin um contexto crítico expandido, no qual as contradições e complexidades possam desempenhar seu papel, um contexto que seja multifacetado e não monolítico”, sugere a pesquisadora.
A posição de Broude despertou um debate acalorado com a pesquisadora Abigail Solomon-Godeau, em um seminário online promovido pelo MASP em 2022. Solomon-Godeau defendeu que o fato de serem ainda realizadas mostras e pesquisas sobre sua obra seria uma prova de que Gauguin não foi cancelado e não precisaria ser “defendido” por ninguém.
Ampliar a discussão, que há 50 anos trava embates no meio acadêmico, é outro legado positivo da exposição, que suscitou o seminário sobre Gauguin e a publicação de catálogo com textos inéditos de pesquisadores que estudam o artista há décadas. “O debate crítico é fomentado principalmente nas universidades, longe do grande público das exposições. Com essa mostra, estamos provocando e colocando em perspectiva essas posições”, conclui a curadora assistente do MASP.
Serviço:
Exposição: Paul Gauguin: O outro e eu
Curadoria: Adriano Pedrosa, Fernando Oliva e Laura Condesey
Período da exposição: 24 de abril – 6 de agosto de 2023
Visitação: Terça: 10h-19h; Quarta – domingo: 10h – 17h
Ingressos: a partir de R$ 30 (Terça-feira: Grátis)
Endereço: AV Paulista, 1578 — Cerqueira César, São Paulo/SP. Brasil
Karina Sérgio Gomes é jornalista formada pela Faculdade Cásper Líbero e mestre em Artes visuais pelo Instituto de Artes da UNESP. Já escreveu para veículos como Folha de S.Paulo, NeoFeed, Metrópoles e O Estado de S. Paulo. Trabalhou na curadoria de exposições no MAM São Paulo e no CCSP e atua como pesquisadora do Instituto Itaú Cultural
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