São muitas as palavras que podem descrever Mário de Andrade (1893 – 1945). Da escrita à etnografia, o ícone modernista fez de tudo um pouco. Foi poeta, contista, professor, romancista, agente cultural, jornalista, colecionista, historiador e crítico das artes plásticas, da música e da literatura. Participou da Semana de Arte Moderna de 1922, lançou clássicos como Pauliceia desvairada (1922) e Macunaíma (1928) e se dedicou a estudar e preservar as diversas manifestações artísticas do país, tanto eruditas quanto populares. Tornou-se figura incontornável para a cultura brasileira do século XX.
No Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP), essa vasta trajetória é apresentada sob uma nova perspectiva – a de uma sensibilidade queer. A exposição “Mário de Andrade: duas vidas”, inaugurada em 22 de março, reúne um conjunto de 85 peças (sendo 31 exibidas pela primeira vez), formado por pinturas, gravuras, fotografias e esculturas da coleção do próprio intelectual – que atualmente está sob a guarda do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP). A mostra integra a programação anual do museu, que em 2024 se dedica às Histórias da diversidade LGBTQIA+.
Em 2015, toda a produção de Mário de Andrade entrou em domínio público, incluindo a correspondência que o polímata manteve com outros artistas e estudiosos da época. Foi somente a partir desse momento, há nove anos, que sua orientação sexual – até então considerada um tabu – passou a ser notada como um aspecto relevante em sua obra. “Toda vida tem duas vidas, a social e a particular”, escreveu Mário em abril de 1928, em uma carta enviada ao amigo e poeta Manuel Bandeira (1886 – 1968). É desta fala aberta e sincera sobre sua homossexualidade que surge o subtítulo da exposição.
Refletindo sobre itens do acervo particular do autor, a curadora Regina Teixeira de Barros apresenta uma seleção de obras que remonta essa dualidade vivida pelo intelectual, entre vida particular e profissional. Segundo ela, “Mário se qualifica ora como um ‘vulcão controlado’, ora tomado por uma ‘feminilidade passiva’; oscila entre ser um pansexual casto (!) e um monstro libidinoso”. Na exposição, os diferentes recortes de sua personalidade podem ser compreendidos por meio de trabalhos de grandes nomes da arte brasileira, como Anita Malfatti, Flávio de Carvalho e Candido Portinari.
Na coleção de Andrade, alguns eixos temáticos se sobressaem e alcançam posições de destaque na mostra. A presença expressiva de nus masculinos, por exemplo, é mostrada sob um viés modernista. Se entre os séculos 15 e 19 o desenho do corpo humano era usado como parte do estudo tradicional da pintura – tendo a perfeição anatômica das esculturas gregas como referência -, nas obras adquiridas por Mário, os nus são, em sua maioria, exercícios praticados em aulas de modelo vivo. Alguns autores modernos usam cores naturalistas e deformações na musculatura para acentuar a expressividade das figuras, enquanto outros optam pela economia de traços.
Os retratos e autorretratos também formam um núcleo bastante explorado pela curadoria. A versatilidade do intelectual permitiu que artistas amigos o retratassem como um modernista urbano, como nos quadros de Tarsila do Amaral e Lasar Segall, mas também como um homem ligado à terra e às festas populares, como na pintura de Candido Portinari, na qual Mário aparece sem óculos, vestindo uma camisa de botão aberto, na frente de uma paisagem tipicamente brasileira. Para os registros fotográficos, Andrade posou reproduzindo os códigos vigentes empregados pela elite heteronormativa da época. Mas em seus autorretratos experimentais, representou apenas sua sombra, expondo uma visão mais artística de si mesmo.
Também desenvolveu o exercício fotográfico nas viagens que realizou, entre os anos de 1927 e 1929. Cruzou o Norte e o Nordeste do país, navegando pela costa brasileira e adentrando o rio Amazonas até chegar em Iquitos, no Peru, e na fronteira com a Bolívia. Depois, foi de Alagoas até o Rio Grande do Norte, equipado com uma máquina “codaque” e cadernos de anotação. No total, registrou 902 imagens, que foram organizadas e ampliadas ao voltar para São Paulo. Desses documentos, formou o dossiê “O turista aprendiz”, que foi publicado postumamente.
Em uma de suas viagens de pesquisa, desta vez no Rio de Janeiro, investigando as heranças culturais africanas no Brasil, Mário de Andrade teve sua voz gravada pelo linguista estadunidense Lorenzo Dow Turner (1890 – 1972). Este é o único registro da voz do autor que chegou até os dias de hoje e certamente é um dos destaques da exposição. Turner o gravou junto da romancista Rachel de Queiroz (1910 – 2003) e da tradutora Mary Pedrosa (1906 – 1984), cantando seis músicas regionais. No MASP, é possível ouvir Mário cantando “Zunzum”, de Minas Gerais; “Deus lhe pague a santa esmola”, registrada pelo poeta Catolé do Rocha, na Paraíba; e “Toca zumba”, composta por Gomes Cardim (1832 – 1918), logo após a abolição da escravatura, em 1888. Os fonogramas pertencem à coleção Lorenzo Dow Turner, em depósito na Universidade de Indiana, nos Estados Unidos.
De acordo com Daniela Rodrigues, assistente curatorial da mostra,o erotismo aparece como um tema recorrente na vida pessoal de Andrade e em seu imaginário sobre o Brasil. “Não se trata de ler sua produção como autobiográfica, como se tudo remetesse a ele mesmo, mas em alguns textos veem-se vestígios da sua inquietação sobre a sexualidade enquanto tema e vida”, ela explica. E com uma família católica fervorosa – como se não bastasse a própria sociedade conservadora do século passado -, ele passou por diversas repressões ao longo de sua vida.
Na exposição, o público pode ver obras que causaram ainda mais repressão à Mário quando foram adquiridas, como a polêmica “Cabeça de Cristo”, de Victor Brecheret (1894 – 1955). Comprada em 1922, teve reações imediatas de seus familiares. Vinte anos depois, ele contou que seus parentes invadiram a casa para ver a escultura e brigar: “[…] Berravam, berravam. Aquilo era até pecado mortal!, estrilava a senhora minha tia velha, matriarca da família. Onde se viu Cristo de trancinha!, era feio, medonho! Maria Luisa, vosso filho é um ‘perdido’ mesmo”.
“Mário de Andrade: duas vidas” não é apenas uma revisão sobre a obra de um dos maiores estudiosos do país, mas também um reflexo para a responsabilidade das instituições culturais em explorar a diversidade da história da arte brasileira e repensar a representação dos clássicos da nossa cultura.
Serviço
Exposição: Mário de Andrade: duas vidas
MASP – Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand
Curadoria: Regina Teixeira de Barros
Visitação: 22 de março a 09 de junho
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