Alguns artistas, por escolha ou por necessidade, abordam em suas obras as sombras do mundo. Fazem da arte uma plataforma para denunciar injustiças, exorcizar monstros. Outros, ao concordarem que a vida pode ser bruta, escolhem a via da suavidade. Fazem da arte uma ferramenta para transcender aos acontecimentos do cotidiano. Henri Matisse foi desses artistas que escolheu fazer de sua obra um oásis em meio ao concreto da vida moderna.
Matisse em sua casa em 1949. Imagem: Google Arts and Culture. Autoria: Gjon Mili
Nascido em Le Cateau Cambrésis (França), em 1869, Henri-Émile-Benoît Matisse era filho de uma família de boa posição econômica. Seus pais eram proprietários de um próspero comércio de grãos nesta cidade do norte cinzento francês. Seu pai, um homem conservador, ao perceber que o filho não tinha aptidão para os negócios da família, fez questão que ele estudasse para se tornar advogado. Matisse chegou a se formar no direito e a exercer timidamente a profissão, mas um acontecimento inesperado mudou sua vida para sempre.
O jovem, em seus 20 e poucos anos, precisou passar por uma complicada cirurgia de apendicite que exigiu um penoso período de recuperação. Ao ver o filho naquela situação, sua mãe o presenteou com uma caixa de madeira, que em sua simplicidade continha um universo novo para o jovem Matisse. Era um conjunto completo de materiais de pintura. “Descobri uma espécie de paraíso”, Matisse escreveu em seu diário recordando aquele primeiro encontro com a pintura.
Matisse em seu ateliê em 1950. Imagem:TimeLife. Autoria: Dmitri Kessel
Era um caminho sem volta que se abria diante dele. Em 1891, decidiu abandonar a profissão de advogado e preparar-se para as provas de admissão na Escola de Belas Artes de Paris, instituição histórica de ensino da arte tradicional acadêmica. Para tanto, passou a ter aulas com William-Adolphe Bouguereau, presidente da Sociedade de Pintores e Gravadores e artista referência em termos do estilo apreciado pela academia. Matisse sentia-se atrasado em relação a outros artistas por ter começado sua educação artística mais tarde. Mas não tardou a perceber que essa sensação de descompasso não se tratava apenas de uma questão de tempo de estudo. Bouguereau ensinava um modo de se pintar através de modelos pré-definidos enquanto que Matisse ansiava por liberdade de expressão.
Logo Matisse passou a ter aulas com outro professor da academia. Desta vez, um muito mais libertário. Gustave Moreau levava seus alunos para o Louvre e os instigava a fazerem cópias das obras clássicas, procurando encontrar suas formas pessoais de expressão ao executarem a tarefa. Para Moreau, era importante que o jovem artista fosse livre, que buscasse um sentido de vida na obra. Na mesma época, Matisse conheceu o artista Camille Pissarro, um dos mais importantes artistas do movimento Impressionista. Pissarro, por sua vez, abriu os olhos do jovem Matisse para o senso da luz como uma importante parte do objeto da pintura, além do uso de cores mais vivas empregado pelos impressionistas.
Após alguns anos de estudo, Matisse participou, em 1896, do Salão Anual de Belas Artes, tradicional exposição parisiense. Apresentou as obras Natureza morta com pêssegos, Natureza morta com faca negra e Mulher lendo. A última chegou a ser comprada pelo governo francês para ser utilizada na decoração da residência presidencial. No entanto, apesar do reconhecimento inicial, a obra de Matisse estava longe da maturidade pela qual entrou para a história.
Henri Matisse. Mulher lendo, 1896. Imagem: henry-matisse.com
Durante todos estes anos, Matisse seguiu estudando os métodos clássicos, sendo influenciado pelos impressionistas e tentando encontrar seu lugar próprio em meio a correntes opostas. Ainda assim, seu estilo não estava bem definido, tampouco era bem visto por outros artistas. Porém, novamente um acontecimento em sua vida pessoal o transformou. Tratava-se do seu grande amor e consequente casamento com a jovem Amélie Parayre. No ano de 1898 os dois casaram-se e partiram em viagem de lua-de-mel, passando por muitos lugares, mas tendo um deles uma força especial nos sentidos de Matisse. A temporada em Córsega, a beira do mar Mediterrâneo causou uma impressão tão forte em Matisse que sua pintura deu um salto. A abundância de luz e natureza do litoral proporcionam ao artista uma imersão em cor e sua obra foi invadida por essa vivacidade.
Henri Matisse. Pôr do sol em Córsega, 1898. Imagem: henry-matisse.com
Após o período colorido de lua-de-mel no litoral, Matisse e a esposa Amélie enfrentam um período sombrio em suas vidas. Matisse abandonou a Escola de Belas Artes e seu pai cortou a mesada que enviava ao filho como uma forma de tentar dissuadi-lo da carreira de artista. Na mesma época, os pais de Amélie encontram-se envolvidos num escândalo financeiro e jurídico provocado pela família para a qual trabalhavam. Matisse precisou então exercer novamente sua profissão de formação para assumir o papel de advogado do sogro. A situação financeira dos dois se complicou e Amélie passou a trabalhar para contribuir no sustento da família.
Matisse tinha uma convicção muito grande na sua necessidade de expressão sincera através da arte. Mesmo nesse período difícil, abriu mão de vender pinturas populares de paisagens para seguir pintando aquilo que sentia em seu íntimo. Seus filhos pequenos o ajudaram nesse período. Sua presença alegre, seus desenhos livres de criança espalhados pela casa seguiam inspirando Matisse a buscar a sua própria liberdade na pintura. Ao longo da carreira, o artista produziu muitos retratos intimistas de seus filhos e vida doméstica.
Henri Matisse. A família do pintor, 1911. Imagem: Gagosian
Aos poucos a família foi superando o período turbulento e Matisse voltou a exibir seus trabalhos. Sua primeira exposição individual aconteceu nesse momento. A galeria Vollard, abrigou em 1904 uma seleção de obras do artista. Nessa época, porém, sua obra deu mais uma guinada. Reminiscente do verão de Córsega, Matisse decidiu passar o verão de 1905 com sua família em Collioure, no litoral francês. Collioure não era mais do que um pequeno vilarejo de pescadores afastado de tudo. A tranquilidade e as cores do lugar provocaram em Matisse um efeito tremendo e ele passou a pintar o que viria a se tornar o primeiro movimento modernista da história. Matisse passou a empregar as cores não como são vistas na natureza, mas como elementos que se expressam por si.
Nesse verão ele pintou algumas de suas mais importantes obras, como Mulher com chapéu. Matisse sabia que o que estava fazendo era algo completamente novo e carregado de uma potência desconhecida. Ele entrou em contato com vários conhecidos artistas os convidando a irem até Collioure para participarem daquele evento que se dava ali. O único que aceitou o convite foi André Derain. Os dois passaram os dias pintando, experimentando cada vez mais radicalmente o uso das cores, achatando a perspectiva da tela. Ao final daquele verão, eles haviam criado o Fauvismo.
Henri Matisse. Mulher com chapéu, 1905. Imagem: Google Arts and Culture
Meses mais tarde, naquele mesmo ano, Matisse expôs algumas dessas obras no Salão de Outono, em Paris. O Salão era um tradicional acontecimento do mundo da arte e, sendo assim, tinha uma perspectiva bem mais conservadora. Ao ver uma obra do renascentista Donatello ao lado dessas obras nas quais a cor era o principal elemento, o crítico Louis Vauxcelles comentou que Donatello estaria entre as feras (fauves, do francês), dando origem ao nome do movimento.
O movimento Fauvista foi um dos precursores na libertação da arte da necessidade de representação naturalista do mundo. Pavimentou o caminho para que pudessem surgir as vanguardas modernas, expandindo sua influência por todo o mundo, inclusive no Brasil. Importantes nomes da arte brasileira foram fortemente influenciados pelo fauvismo, nomes como Anita Malfatti e Di Cavalcanti beberam diretamente dessa fonte.
Essa ênfase na sensualidade da cor era muito radical para a época e Matisse precisou lidar com a incompreensão e a rejeição do público, dos críticos e mesmo de outros artistas. O artista seguia acreditando firmemente em suas convicções e, em 1908, lançou um manifesto estético no qual defendia uma arte do equilíbrio, da pureza e da serenidade. Ele dizia sonhar com uma arte afastada de temas que perturbassem ou preocupassem. Uma arte que fosse um respiro em tempos turbulentos.
No mesmo ano, em 1908, Matisse abriu uma escola em Paris onde passou a lecionar de acordo com sua perspectiva de arte. Sua convicção e perseverança começaram a dar frutos e o artista passou a ganhar fama no exterior. Seu trabalho cada vez mais maduro, agora apresentava uma força indiscutível. Nessa época, pintou algumas de suas obras primas, como O ateliê vermelho. Expôs em Paris, Londres e Nova Iorque. Teve contato com Renoir e expôs ao lado de Marcel Duchamp e Picasso, o pai do cubismo.
Henri Matisse. O ateliê vermelho, 1911. Imagem: MoMa
Desde os anos 1940 passou a desenvolver uma técnica de “desenho com tesoura”, como ele denominava. Essa técnica surgiu da necessidade de mudar sua prática em decorrência de suas condições físicas deterioradas pela idade avançada e pelas consequências de uma cirurgia que sofreu e da qual nunca se recuperou completamente.
Henri Matisse. Icaro, 1944. Imagem: MoMa
Seu reconhecimento cresceu exponencialmente ao longo dos anos e em 1947 foi consagrado com A Ordem Nacional da Legião de Honra, condecoração honorífica francesa e, em 1950, com o grande prêmio na XXV Bienal Internacional de Veneza.
Matisse produziu arte até o final de sua vida e faleceu em 1954, tendo visto um museu homônimo em sua homenagem ser construído em sua cidade natal.
Matisse acreditava no poder da cor como elemento primordial da pintura. Uma força independente e expressiva em si. Essa crença o levou a desenvolver uma nova linguagem pictórica, completamente inconcebível sem ele.
Luísa Prestes, formada em artes visuais pela UFRGS, é artista, pesquisadora e arte-educadora. Participou de residências, ações, performances e exposições no Brasil e no exterior.
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