A história é um campo de constante disputa. Os acontecimentos definidores da história brasileira e seus protagonistas, assim como uma série de características sócio-culturais, passam hoje por uma onda de revisões nesse contexto de disputa, o qual suscita a questão: como contar a história desse território?
Após a realização de outros ciclos de “histórias” desde 2016 – o primeiro, “Histórias da infância”, seguido por “Histórias da Sexualidade” em 2017, “Histórias afro-atlânticas” em 2018, “Histórias das mulheres, histórias feministas” em 2019 e “Histórias da dança” em 2020 -, o MASP chega a um ciclo dedicado a recontar as formações culturais e sócio-políticas brasileiras através das imagens e da arte.
Reunindo cerca de 380 obras de 250 artistas, os oito núcleos que compõem a exposição foram desenvolvidos por diferentes times de curadoria, incluindo direção curatorial de Adriano Pedrosa, diretor artístico do MASP, atuação de Lilia Moritz Schwarcz como curadora convidada, e curadoria de Sandra Benites, Clarissa Diniz e Tomás Toledo. Outros nomes que compõem esse time são André Mesquista, Fernando Oliva e Isabella Rjeille, ao lado dos curadores assistentes Amanda Carneiro, Glaucea Britto e Guilherme Giufrida.
Bandeiras e mapas nos localizam nos planos simbólicos e geográficos. Com diferentes propósitos, produzidos nos campos da arte e das ciências, as imagens de bandeiras e os desenhos de mapas sinalizam – e tentam sintetizar – valores de uma nação.
Com um território tão vasto quanto o brasileiro, ocupado por uma nação formada no encontro de muitas culturas e povos – os povos originários, os colonizadores invasores, os afro diaspóricos sequestrados na colônia e, posteriormente, outros imigrantes -, é compreensível que as demarcações geográficas e a bandeira nacional não contemplem esses diversos grupos.
Nessa diversidade de olhares surgem as disputas e críticas em torno da simbologia da bandeira brasileira, assim como as implicâncias geográficas na construção do país estampadas em vários mapas. Esses são os assuntos centrais no eixo Bandeiras e Mapas, que abre a exposição no primeiro andar do MASP.
Obras de artistas como Abdias Nascimento e Bruno Baptistelli apresentam outras configurações da bandeira nacional, distorcendo esse emblema em caráter crítico. Já o mapa do Brasil é discutido em obras de artistas como Talles Lopes, Cildo Meireles e Jaime Lauriano, pensando nos fluxos migratórios e imigratórios, nas demarcações e em outras questões territoriais. A curadoria desse eixo foi pensada por Lilia Moritz Schwarcz e Tomás Toledo.
As discussões em torno do território aparecem de forma esmiuçada no terceiro núcleo da exposição, Terra e território, ainda no primeiro andar, sob curadoria de Adriano Pedrosa e Isabella Rjeille. Neste espaço, a narrativa dos povos originários ganha protagonismo acerca da ocupação territorial no Brasil, uma terra indígena invadida.
A curadoria trouxe para o espaço obras que discutem a relação de povos indígenas com a terra, assim como as empreitadas exploratórias coloniais desde 1500, que se refletem até hoje no desmatamento e na desapropriação de terras indígenas em favor do agronegócio.
O conjunto de trabalhos aborda não apenas os efeitos da exploração colonial sobre matérias-primas, mas um histórico de resistências ao longo dos séculos até a contemporaneidade, especialmente das populações indígenas e africanas até seus descendentes. Artistas como Claudia Andujar, Jaime Lauriano, Salissa Rosa e Candido Portinari, são alguns dos destaques deste núcleo.
Dois núcleos de Histórias brasileiras dirigem-se diretamente a estilos canônicos na história da arte: a pintura de retrato e a paisagem, que por séculos foram estabelecidos especialmente no campo da pintura.
Paisagens e trópicos, o segundo núcleo da exposição, aborda a paisagem, seus elementos naturais e o papel desse estilo na construção de um imaginário específico sobre nossas terras. Sob curadoria de Guilherme Giufrida e Schwarcz, o núcleo parte da pintura pré-histórica, passando pelo holandês Frans Post e o início de uma visão sistemática e canônica sobre a paisagem brasileira, chegando aos povos originários e nossos contemporâneos, que libertam esse imaginário do estigma e exotização acadêmica.
Um destaque nesse espaço é a obra Natureza Morta 1, de Denilson Baniwa, uma fotografia editada na qual o artista insere a silhueta de uma liderança indígena demarcando uma área desmatada. O título da obra se refere ao tradicional estilo da pintura usualmente dedicada à representação de composições com alimentos, flores e objetos domésticos – ao mesmo tempo em que “natureza morta” denuncia o genocídio das populações indígenas.
São marcantes as contraposições críticas entre a pintura acadêmica estrangeira a partir dos trabalhos contemporâneos que rebatem diretamente uma visão colonial. Estes trabalhos são colocados, inclusive, em disposições espaciais que brincam com hierarquias, jogando com o tempo e o valor das obras emblemáticas, como ocorre com a obra de Victor Meirelles, posta abaixo do trabalho contemporâneo Eu só vendo a vista, de Marcos Chaves.
Outro diálogo interessante no núcleo ocorre com a obra de Frans Post, apresentada junto a obra de Sandra Gamarra, artista que revisita as composições do pintor holandês inserindo textos, utilizando uma paleta avermelhada com base no uso do óxido de ferro, referência ao uso do material por indígenas e artistas ao longo da história da arte.
Retratos é o primeiro dos núcleos apresentados no segundo subsolo do MASP, organizado em um longo corredor. Um dos gêneros mais tradicionais na pintura, o retrato está atrelado a uma série de relações sociais, passando por questões entre a representação e a representatividade, demonstração de poder e construção de padrões de beleza e comportamento, entre outros. Mais do que simplesmente representar um indivíduo, o retrato o localiza e reafirma a posição da pessoa retratada na sociedade.
O núcleo apresenta uma diversidade de estilos na pintura e apresenta diálogos interessantes entre artistas icônicas da arte brasileira como Tarsila do Amaral, Anita Malfatti e Maria Auxiliadora, próximas a nomes contemporâneos como Marcela Cantuária, Pegge e Panmela Castro. Reconhecendo a falta da presença de pessoas negras e indígenas retratadas no acervo do MASP, a curadoria do núcleo, a cargo de Pedrosa e Schwarcz, encomendou retratos para os artistas Antônio Obá, Carmézia Emiliano, Duhigó, O Bastardo, Larissa Souza, No Martins, Panmela Castro e Wallace Pato.
Retomadas, o último núcleo do primeiro andar, ficou conhecido antes da abertura da exposição quando as curadoras Sandra Benites – a primeira curadora indígena do MASP – e Clarissa Diniz anunciaram que um conjunto de fotografias do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, o MST, estavam sendo vetadas pela instituição. Depois de forte pressão das curadoras ao trazer o caso a público – ganhando apoio do meio artístico -, a instituição recuou diante das acusações de censura, permitindo a presença das fotografias.
O MASP também atendeu a uma série de exigências das curadoras para a permanência do núcleo na exposição, dentre as quais estão a distribuição de seis fotografias de João Zinclar, André Vilaron e Edgar Kanaykõ, a realização de um seminário online transmitido simultaneamente nos canais do MASP e do MST, a ampliação dos dias gratuitos para a visitação no museu ao incluir a quinta-feira, entre outras.
O nome escolhido pelas curadoras parte das retomadas indígenas, como os povos originários chamam a ocupação dos territórios de seus ancestrais. Inspirado nas retomadas territoriais, a curadoria engloba também o resgate de tudo aquilo que pôde ser destituído nos processos coloniais: a cultura, os costumes, os saberes. A atuação do MST desde 1984 deu novos contornos para o debate da reforma agrária, outra grande retomada discutida neste núcleo.
Um dos pontos mais interessantes neste núcleo é a discussão do corpo desobediente aos sistemas de opressão que acometem a todos em sociabilidade. A obra de Cápsula de Leite de Nídia Aranha, por exemplo, é composta pelo leite produzido pela artista, travesti, enquanto ela esteve sob uma dieta hormonal e indução de lactação, submetendo-se a um processo de extração de leite. A pesquisa de Aranha está inserida em um contexto de artistas que hackeiam noções conservadoras de como deve ser e o que pode um corpo dentro das normas.
As lutas sociais também são assunto no núcleo Rebeliões e revoltas, montado no segundo subsolo sob curadoria de André Mesquita e Lilia Moritz Schwarcz. André Mesquita e Lilia Moritz Schwarcz. Neste, as lutas atingem seus pontos mais simbólicos através das insurreições, levantes, de momentos históricos mais distantes até as militâncias mais recentes.
Os dois últimos núcleos da exposição abordam de maneira mais direta aspectos da nossa cultura imaterial. Mitos e Ritos, com curadoria de Fernando Oliva, Glaucea Helena Britto e Tomás Toledo, traz ao espaço do museu o encontro das diferentes manifestações religiosas praticadas no Brasil. A curadoria não buscou contemplar a infinidade de práticas religiosas que convivem por séculos neste território, mas apresentou o encontro dessas práticas, inclusive no aspecto formal de obras de arte como as de Emanoel Araújo, Daiara Tukano, Edival Ramosa e Rubem Valentim. Outro destaque na sala é a obra de Aleijadinho, maior nome da escultura barroca brasileira no período colonial.
As Histórias Brasileiras se encerram em Festas, uma parte da exposição que pensa o encontro coletivo na festividade, seja na esfera pública ou privada. Curado por Pedrosa e Amanda Carneiro, o núcleo apresenta obras que discutem as performances de gênero, a liberdade, as manifestações culturais através das danças, figurinos, músicas e tantos outros elementos que compõem as festividades brasileiras. As obras sinalizam festas das mais regionais e tradicionais ao carnaval, que ganhou reconhecimento internacional e compõe um imaginário mundial sobre o Brasil.
Com um conjunto poderoso de grandes artistas, coletivos e registros históricos, a exposição transita a cada momento entre visões individuais e coletivas, o público e o privado, ficções e realidades, pelas quais os visitantes encontram diversas possibilidades de reconhecimento no meio de uma multiplicidade de histórias.
Uma expografia simples organiza os trabalhos de modo que as narrativas curatoriais sejam o foco do espaço, que permite também um grande fluxo de visitantes com um bom recuo para a visualização.
Histórias brasileiras fala sobre a coletividade, dos times curatoriais e suas atuações à diversidade de artistas, chegando às imagens e representações que compõem o projeto. É uma exposição que reconhece o desafio de falar sobre as dimensões continentais do país – não só territoriais, mas também culturais. São histórias que ganham novas formas de serem contadas, lembrando do papel da memória e das lutas para a construção – e reconstrução – coletiva dos muitos Brasis que dividem a mesma terra.
Exposição “Histórias Brasileiras”
26 de agosto 2022 até 30 de outubro 2022
MASP | Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand
Avenida Paulista, 1578 – Bela Vista
Diogo Barros é curador, arte educador e crítico, formado em História da Arte, Crítica e Curadoria pela PUC SP.
Gostou desta matéria? Leia também: