Produções artísticas que mergulham no campo da abstração – especialmente em vertentes minimalistas – oferecem a possibilidade de reflexão acerca do que é constituinte e essencial na arte. Arcangelo Ianelli foi um desses artistas que pavimentaram seu próprio caminho, como uma síntese acerca de determinados problemas envolvendo elementos básicos na arte, como a cor e a forma.
Através de uma carreira consistente – porém nunca estagnada -, o artista experimentou de maneira única dentro da pintura e posteriormente na escultura. A exposição “Ianelli 100 anos: o artista essencial” no Museu de Arte Moderna de São Paulo celebra justamente essa trajetória que fala tanto de um artista altamente comprometido com seu ofício, como de uma obra que ilustra o avanço da pintura abstrata e os estudos de campos de cor no Brasil no século XX.
Com curadoria de Denise Mattar – que já foi diretora do MAM e amiga de Ianelli -, essa exposição é de fato uma celebração da obra do artista e sua relação de longa data com o MAM São Paulo. Além de duas individuais realizadas no museu em 1961 e 1999, são destaques o Prêmio no Panorama da Arte Atual Brasileira do MAM São Paulo, concedido a Ianelli em 1973, assim como o Prêmio de melhor exposição do ano da Associação Brasileira de Críticos de Arte pela retrospectiva Ianelli: do figurativo ao abstrato, apresentada no MAM São Paulo em 1978.
Para apresentar um panorama da obra do artista paulistano ao público do museu, a exposição traz obras que abarcam décadas de produção, entre 1950 e 2000. Os eixos da expografia não seguem uma cronologia linear, mas oferecem uma caminhada que retorna a diferentes momentos da carreira, possibilitando uma leitura mais dinâmica da obra como um todo.
A aproximação de Ianelli com as artes visuais ocorre aos 20 anos de idade quando passa a frequentar, em 1942, o ateliê do retratista Colette Pujol, posteriormente estudando também no ateliê da Associação Paulista de Belas Artes. Ianelli tem uma formação acadêmica e a sua poética, no primeiro momento, gira em torno de gêneros clássicos como a paisagem e ambientes domésticos.
Já no ano de 1950, o artista entrou para o Grupo Guanabara, juntamente com Manabu Mabe, Jorge Mori, Yoshiya Takaoka, Tomoo Handa, Tikashi Fukushima e Wega Nery, entre outros. A geometria sem dúvidas é uma ferramenta predominante no trato formal de Ianelli em diversas fases da sua pintura. A ponto de que suas paisagens passam por um processo de geometrização intensa entre a segunda metade da década de 1950 e a seguinte.
Vale lembrar que a realização das Bienais de São Paulo nessa década foram essenciais para implementar de vez a discussão acerca da abstração no Brasil, tendo a primeira edição realizada em 1951 pelo próprio MAM SP. As participações de Ianelli em Bienais de São Paulo ocorreram nos anos de 1961, 1963, 1965, 1967, 1973, 1975, 1987 e 1989, além da Bienal Brasil Século XX, em 1994.
A década de 1960 foi decisiva para Ianelli em relação ao seu comprometimento com a abstração informal. As paisagens dão espaço a experimentações geométricas livres de referências diretas às formas do mundo. Segundo a curadoria dessa exposição, o artista foi neste momento influenciado pelo contato com seus colegas do grupo Guanabara, como Manabu Mabe e Tomie Ohtake.
Esse aprofundamento em questões formais abre espaço para que, na década de 1970, suas obras possam explorar novas noções de profundidade na pintura, a partir de transparências e sombreamentos. É nessa fase que o artista utiliza com rigor a técnica da têmpera.
Em 1975, o artista recebeu um convite do arquiteto João Kon para desenvolver um painel no edifício Diâmetro em São Paulo. Pensando na durabilidade da obra, Ianelli decide projetar um tríptico geométrico horizontal feito de cimento. Sua paleta sóbria dessa fase ganha então a tridimensionalidade, o que fará o artista se interessar por técnicas de escultura. A partir de então realiza seus primeiros protótipos em madeira, o que levará a uma fase escultórica em mármore décadas depois.
A produção de Ianelli consequente à década de 1970 o insere em um espaço livre para testar essas diversas vertentes já trilhadas. O artista mantém diversas linhas de estudos que se influenciam. Sua geometria passa então por uma fase de intensificação na vibração das cores quando sua obra é, finalmente, tomada por um elemento que marcará algumas de suas pinturas mais interessantes. Trata-se da atmosfera pictórica criada por Ianelli, com campos de cores que surgem de uma nebulosidade escura que toma as bordas e ressalta o centro.
No catálogo da exposição, é possível ler um verbete do celebrado crítico italiano Giulio Carlo Argan a respeito da obra de Ianelli, na ocasião de uma individual de Ianelli na Embaixada do Brasil em Munique, Alemanha, em 1966. No breve texto, Argan reconhece as aproximações e diferenças entre a obra do paulistano com Mark Rothko, pintor norte-americano de origem letã e judaica, que deixou sua marca na pintura estadunidense. As obras de ambos se encontram nos grandes campos de cor, mas o crítico aponta para algumas diferenças, em especial as inspirações de cada um – enquanto Rothko busca referências na arte oriental, Ianelli usaria suas origens italianas para compor seus próprios estudos com cores, valorizando também aspectos geométricos e a profundidade.
Como já mencionado, uma das qualidades da obra de Ianelli é a coerência. Quando decide levar suas pesquisas aos relevos e esculturas, garante o aprimoramento de seus estudos geométricos e paletas terrosas desenvolvidas na pintura. O que pode ser notado nos relevos é uma obra adquirindo sutilmente uma espacialidade, expondo camadas através de variações de cores e planos.
Já a escultura, primeiro projetada na madeira, para depois ser materializada no mármore, parece oferecer a Ianelli uma nova abordagem. O próprio artista menciona que o mármore, apesar de ser uma matéria fria, quando trabalhado adquire formas mais sensuais. Dessa maneira o artista apresenta formas mais arredondadas em peças verticalizadas , enquanto em outras mantém o rigor geométrico quadriculado.
Apesar da grande contribuição de Arcangelo Ianelli para a arte brasileira no século XX, sua produção não é tão disseminada como a de outros artistas próximos a ele, como Tomie Ohtake, por exemplo. Com essa retrospectiva, o MAM SP segue cumprindo sua missão de aproximar diferentes gerações de públicos de obras marcantes para a arte moderna e contemporânea brasileira.
Ianelli, através da vivência de um artista de fato engajado em seu ofício, oferece ao público a imersão na pintura e lembra daquilo que é essencial. Em uma época de tantas exposições que buscam mediar nossa experiência na arte através de recursos tecnológicos e novas leituras sobre artistas, é essencial que exposições como essa do MAM lembrem que a imersão na arte sempre foi uma proposta e uma possibilidade. Quem tem a chance de presenciar a obra de Ianelli, deve permitir-se a afetação por cada elemento essencial.
Diogo Barros é curador, arte educador e crítico, formado em História da Arte, Crítica e Curadoria pela PUC SP.
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