Cerâmica e Porcelana são o resultado de transformações físico-químicas, proporcionadas por múltiplos processos de queima e esmaltação da argila, em altas temperaturas. Com vestígios cerâmicos que datam de 5.000 a. C. e com a descoberta de peças em porcelana, produzidas na China ao menos desde o século VI, podemos dizer que estas técnicas se confundem com a própria história da humanidade.
O processo de produção de peças a partir da argila é árduo e exige, frequentemente, um tempo prolongado. Alguns ceramistas falam da dimensão física do trabalho manual e da imprevisibilidade ao lidar com o fogo. Uma vez moldadas, e depois esmaltadas, não é certo que as peças irão resistir ao processo de queima, ou mesmo assumir a aparência pretendida.
Pouco exploradas em contextos da arte, por muito tempo as técnicas de cerâmica e porcelana foram identificadas, quase exclusivamente, à produção de objetos utilitários. No entanto, este panorama tem se transformado com o papel central ocupado pela experimentação em cerâmica, em propostas recentes de artistas visuais. Despontam, assim, trabalhos que convocam novos olhares para essas técnicas milenares, apresentando as inúmeras possibilidades de experimentação a partir da argila.
Entre os precursores da cerâmica na arte moderna, nomes como: Ken Price (1953-2012, Estados Unidos), com suas esculturas abstratas e antropomórficas que levaram a cerâmica para além de seus lugares tradicionais; Betty Woodman (1930-2018, Estados Unidos), que muito influenciada pelos modelos históricos desta técnica, criou versões descontruídas, fragmentárias, dos tradicionais vasos em cerâmica; e no contexto brasileiro, a produção fundamental de Francisco Brennand.
Trabalhos recentes de artistas atuantes no cenário nacional, como Brisa Noronha, Laerte Ramos e Lígia Borba permitem conhecer o interesse pela cerâmica e porcelana, no campo da produção contemporânea. Obras que revelam diferentes processos de criação. Desde experiências que investigam aspectos como peso, densidade, relevos, cores, texturas, e a delicadeza que a argila pode assumir. Até propostas que, partindo de pressupostos diversos, experimentam formas de repetição, seriação e ocupação do espaço; criando objetos escultóricos e instalações.
A produção de Brisa Noronha (1990, Belo Horizonte, MG) parte da observação de ambientes cotidianos, afetivos, principalmente da casa e do ateliê. Suas propostas consistem, sobretudo, em pesquisas de materiais, que recorrem às técnicas de cerâmica e porcelana.
A artista visual também desenvolve trabalhos em pintura, fotografia, vídeo e instalação, investigando modos de dispor e estabelecer relações entre objetos, sejam eles produzidos em seu ateliê ou colecionados. Mesmo que sua pesquisa se desdobre em diferentes suportes, a porcelana é um lugar de partida e também um ponto ao qual retorna, após a experimentação em diferentes meios.
Atento ao caráter instável da matéria, o processo criativo de Brisa revela o interesse pelo trabalho em arte enquanto pesquisa experimental. É pautado por ações que não são pré-estabelecidas, de forma rígida, propondo um tempo de fatura estendido e uma produção que opera em ciclos. Nesse sentido, a criação de peças em porcelana é sucedida por procedimentos de observação, combinação e ordenação.
Ao investigar a porcelana, a artista busca compreender características próprias ao material. Indaga a fragilidade que a argila pode assumir. E dedica longos períodos de tempo a estes exercícios. Em trabalhos como a instalação Minúcias (2015), procura imprimir delicadeza à matéria, observando seus limites, em termos de espessura, tamanho, densidade. Em seguida, propõe formas de organização das peças produzidas.
Seus trabalhos utilizam, principalmente, a porcelana branca não-esmaltada. Atenta às particularidades dos objetos que cria, recorre a ações simples como empilhamento, encaixe e disposição lado-a-lado. Procedimentos que demonstram a centralidade da dimensão dos processos, em sua produção. Nesse fazer delicado e persistente, o corpo da artista desempenha papel importante, ao testar diferentes modos de combinar as peças. Seus trabalhos investem um olhar naquilo que é simples, cotidiano, quase invisível.
Laerte Ramos (1987, São Paulo, SP) é conhecido pela extensa produção contemporânea em cerâmica. Desde de 1998 tem participado de exposições coletivas e individuais – no Brasil e no exterior – com propostas que expandem o que é esperado, quando se trata dessa técnica.
Seu percurso tem, no entanto, a xilogravura como ponto de partida. As pesquisas nestes suportes se aproximam pelo interesse do artista visual em experimentar formas de reprodução e seriação, possibilitadas seja por moldes, utilizados na produção de peças em cerâmica, ou matrizes, na xilogravura. Este diálogo aparece em propostas como Formas de Reuso, uma releitura, em esculturas cerâmicas, de uma série de desenhos de caixas d’água, produzidas em xilo; e 50% off, trabalho composto por um série de peças únicas, em cerâmica, realizadas a partir de moldes dos pés esquerdos de calçados, doados ao artista.
Laerte Ramos também transita por linguagens como instalação, vídeo, performance e intervenções urbanas. Interessada na produção simultânea em diversos meios, a exposição Re.van.che, de 2009, é uma proposta emblemática, que permite observar procedimentos recorrentes na produção do artista visual. Nela, apresentou esculturas em cerâmica vermelha, reproduções de objetos comuns ao universo do boxe, que remetem ao próprio caráter exaustivo da produção de peças nessa técnica. Re.van.che consistia, ao mesmo tempo, em uma instalação e propunha uma ação em performance. Nesta experiência, se o estado orgânico da argila, em contínua transformação, é suspenso pela ação do fogo e o artista cria suas densas esculturas em cerâmica. Ela torna-se novamente pó, matéria instável, pela ação da performer que destrói um dos objetos realizados para a instalação.
Em outro projeto recente, Casamata, instalação composta por 102 peças de cerâmica, exibida em 2014, na Pinacoteca de São Paulo, Laerte Ramos busca referências na natureza e em metáforas bélicas. Trata-se de uma pesquisa que parte da ação do João-de-barro, pássaro conhecido por construir o próprio ninho com argila, folhas e gravetos. As peças em cerâmica e o ninho feito pelo João-de-barro encontram na argila uma origem comum. O artista visual fala de uma “memória ativa”, guardada pelo material. Outra referência conceitual fundamental para o projeto, são as pesquisas em torno das fortificações subterrâneas militares, as casamatas.
Partindo destes paralelos, Laerte Ramos cria pequenas esculturas em cerâmica, estruturas vazias, que devolvidas à natureza podem, ou não, ser habitadas. As estruturas realizadas a partir de moldes em gesso, apresentam ligeiras diferenças em seu design. Após o processo de queima e esmaltação, as peças compõem um conjunto multiforme e passam a ocupar o espaço de galerias e museus de arte.
A pesquisa de Lígia Borba (1952, Brusque, SC) explora diferentes técnicas no campo da cerâmica, experimentando aspectos como cor, esmalte e texturas das peças. A artista visual cria grupos escultóricos, produzidos a partir de moldes com diferenças sutis. Nestes conjuntos, propõe diálogos entre as peças, fazendo com que cada cópia ao mesmo tempo se assemelhe e diferencie das demais.
À princípio, seu trabalho em escultura se direcionava prioritariamente à representação da figura humana. Suas obras em cerâmica, também exploram relações com narrativas literárias e poéticas. Exposições como “Decantação e Desastres”, no Museu Niemayer (Curitiba, 2018) revelam um outro aspecto de seu processo criativo em cerâmica, que a própria artista identifica como uma “obsessão por espacialização”.
A relação entre os objetos escultóricos e o espaço, consiste em elemento marcante de sua produção. Ligia Borba cita também a relação cotidiana com a natureza, como fonte de modelos de experiência e observação, que aplica à criação em cerâmica.
Suas pesquisas recentes, se direcionam a questões de ordem formal, muito próximas de modelos matemáticos e científicos. Em 2020, durante a quarentena, passa a produzir peças em cerâmica que investigam a Fita de Moebius, os Nós borromianos e a Garrafa de Klein.
A Garrafa de Klein consiste em um objeto matematicamente resolvido de forma a produzir o fenômeno de um auto-atravessamento, que estabelece uma continuidade entre dentro e fora. Esta estrutura pode ser bem visualizada em objetos transparentes. Na pesquisa desenvolvida por Lígia Borba, a estrutura é opaca e aparece como a representação de uma face humana. A artista visual cria, assim, paralelos com o corpo e seus processos internos, tais como a respiração e a fala.
Anna Luísa Veliago Costa é Mestre pelo Programa de Pós-graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo, é graduada em História pela mesma universidade, com intercâmbio acadêmico na Universidade Sorbonne-Paris IV.
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