O valor não é alarmante para um circuito que é acostumado a negociar dentro de valores recordes. A peculiaridade dessa obra, porém, é que se caracteriza como uma “escultura invisível”, ou seja, a obra não existe como objeto concreto e visível.
Denominada “Il Sono” (em português, “Eu Sou”), a proposta do artista Salvatore Garau é um espaço de 1,5m x 1,5m delimitado por fitas brancas no chão que destacam o vazio como reflexão.
A ausência de materialidade causa estranhamento e foi motivo de descrédito por parte do público não especializado que torceu o nariz ao não acreditar ser provável que esse tipo de transação aconteça.
O fato é que a obra de Garau ganhou repercussão e partiu de uma dinâmica do circuito artístico que pode ser compreendida a partir de três pilares.
O primeiro paralelo que pode ser traçado é o da desmaterialização da obra de arte. Esse conceito surgiu de uma análise da crítica de arte estadunidense Lucy Lippard ao analisar as produções artísticas da década de 60, onde a materialidade é frequentemente questionada pelos artistas ao reverterem a lógica contemplativa do objeto artístico para uma lógica conceitual. A arte conceitual, neste período, ganha força como a proposta de que a arte é ideia e ação e o objeto se transforma em mero complemento ou elemento referencial de uma ideia maior. Cada vez mais, as propostas artísticas se descolaram da materialidade para uma independência conceitual. É o caso de trabalhos como o de Joseph Kosuth, no contexto norte americano e Cildo Meireles, no caso brasileiro.
Nos escritos de Lippard é levantada a questão sobre até que ponto a arte pode chegar de fato a ausência de qualquer material, ou melhor, a um “nada”. No caso em questão, a obra de Salvatore Garau, essa intenção é levada a um extremo, onde o completo vazio é trazido como proposta artística.
Isso claro, o caráter vendável desse trabalho ainda se torna um mistério para a maioria do público e o segundo paralelo vem a calhar. O mercado de arte trabalha dentro da lógica de atribuição de sentidos simbólicos. Ou seja, uma obra não tem seu valor monetário definido com base no preço de custo do material utilizado em sua produção. A atribuição de valor parte de diversos outros fatores simbólicos como a carreira do artista, as técnicas, as referências que a obra carrega, mas principalmente do discurso criado em torno daquela proposta. Em “Il Sono”, o discurso sobre o vazio transforma um simples espaço sem material em significado poético e instiga quem observa a levantar significações dentro daquela delimitação sugerida no espaço.
A olhar por outra lente mais ampla, é uma tendência humana a necessidade de interlocução. A arte se torna possível apenas quando há outra mente interpretante que dialoga com aquela produção e a valida como tal. Sem interlocução, jamais seria possível qualquer eco de um trabalho de arte.
“Il Sono”, independentemente de qualquer julgamento qualitativo, ecoou de forma sólida ao entrar no escopo de obras de uma casa de leilão italiana, ser vendida e divulgada mundialmente.
Essa interlocução pode nos dizer muito sobre o funcionamento do mercado de arte e as dinâmicas contemporâneas da arte visual.
Tendo os pilares alinhados, soa menos esdrúxulo um trabalho como esse circular no meio artístico. Se pode ser caracterizado como um acontecimento histórico ou potente ao ponto de influenciar as próximas gerações, apenas a história irá dizer, mas é certo que as proposições polêmicas são as que mais interessam à investigação e ao debate contemporâneo.
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Victoria Louise é redatora da ArtSoul formada pela PUC-SP em Arte: História, Crítica e Curadoria e Gestão Cultural
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Resignificando o conceito de que tudo é arte. Agora nada é arte!