O que define o verbo “coreografar” no que diz respeito à movimentação do corpo? Seria coreografia estritamente um conjunto ou sequência de movimentos do corpo com a finalidade da dança? Existiriam coreografias de corpos não humanos – objetos, fauna e flora, tecnologias artificiais e plásticas ou até mesmo o imaterial? O que seriam coreografias fora dos estudos e vivências da dança? A movimentação de corpos em reivindicação política pode ser compreendida como uma dança?
Em coreografias do impossível, curadoria de Diane Lima, Grada Kilomba, Hélio Menezes e Manuel Borja-Villel na 35ª edição da Bienal de São Paulo, a ação do corpo – individual ou coletiva – é central em uma rede de ligações que extrapolam noções básicas de coreografia, através de obras e documentos de 121 participantes.
A edição da Bienal de São Paulo que conta com três curadores negros e maior representação de participantes não brancos da história, afirma essas presenças não apenas como uma ocupação física mas como uma abertura simbólica do espaço para cosmovisões diversas.
As impossibilidades às quais a exposição debate, em grande parte, dizem respeito às condições sociais impostas a determinados grupos historicamente minorizados – pessoas negras, indígenas, LGBTQIAPN+, entre outros atravessamentos de corpos que fogem à norma. Em uma vasta diversidade de abordagens e poéticas encontradas na exposição, é possível afirmar que para cada lógica de dominação, existem múltiplas formas de desvio e resistência.
A coreografia enquanto um sistema de movimentos que pode ser configurado na coletividade – com veias sociais e não apenas artísticas – ganha voz na exposição através dos movimentos sociais ou arquivos e obras que deles partem. A Cozinha Ocupação 9 de Julho, por exemplo, se estabelece no primeiro andar do pavilhão com um restaurante que pode ser frequentado por todos os visitantes e colaboradores ao longo da exposição. Parte do Movimento dos Sem Teto do Centro – MSTC, a Cozinha exibe também seus cartazes da luta por moradia e direito à alimentação de qualidade.
Na sequência de fotografias do Zumví Arquivo Afro Fotográfico, encontram-se testemunhos da vida cotidiana e política de pessoas negras no Brasil – mais especificamente na Bahia. Fundado em 1990 por Lázaro Roberto, Ademar Marques e Raimundo Monteiro, o arquivo sediado em Salvador possui mais de 30 mil fotografias – além de documentos -, e sua extensão contempla desde a intimidade de lares brasileiros a registros de manifestações políticas. Há também a presença da Frente 3 de Fevereiro, em uma instalação multimídia com narração e arquivos remontando suas intervenções em espaços de grande circulação, denunciando o racismo em diversas instâncias e ecoando a luta do movimento negro.
Entre o espaço público e privado, com movimentações individuais e coletivas, políticas e artísticas do movimento negro, demarca-se na exposição uma das principais forças de resistência e a resiliência frente às violências sofridas pela maioria da população brasileira desde a formação colonial do país.
Mas as coreografias do impossível não colocam apenas a luta em evidência. A exposição evoca especialmente a beleza da coletividade. A criação de espaços para o livre e pleno exercício dos afetos é também uma forma de organização política. Um dos destaques nesse sentido é a Sauna Lésbica, obra de Malu Avelar em colaboração com Ana Paula Mathias, Anna Turra, Bárbara Esmenia e Marta Supernova. Apresentada pela primeira vez em 2019 na cidade de Santos, a Sauna Lésbica remonta um espaço imaginado e construído temporariamente pelas artistas onde celebra-se a subjetividade de mulheres – especialmente negras e lésbicas. Na Bienal, a obra consiste em uma instalação com projeções, cortinas e luzes especiais, além de banquinhos e um tablado, compondo uma estrutura pensada para a participação do público em uma série de ações, entre mesas de debate e oficinas, que podem ser conferidas na agenda da Bienal.
Já as fotografias de Rosa Gauditano produzidas em 1979 no Ferro’s Bar de São Paulo, remontam a convivência de mulheres lésbicas no período da ditadura militar, testemunhando o papel desses espaços em contextos de opressão. As fotografias que foram encomendadas na época pela revista Veja nunca foram publicadas, mas oferecem hoje um reconhecimento do passado desse tipo de espaço e sua abertura para o presente.
A memória enquanto celebração da vida e ferramenta para projeção de futuro é um dos aspectos que o Archivo de la memoria trans (AMT) suscita em sua nuvem de lembranças. Concebido por María Belén Correa e Claudia Pía Baudracco na Argentina, o projeto cresce a partir do compartilhamento de mídias e documentos em uma rede formada por pessoas trans de vários países. Frente às constantes tentativas de apagamento e negação sobre suas vivências, o arquivo colaborativo fortalece uma memória coletiva da transgeneridade, estabelecendo uma genealogia afetiva, que perpassa as batalhas – com perdas e conquistas – e os momentos de confraternização.
O resgate da memória de Xica Manicongo, a primeira travesti não indígena a viver em nosso território, é também um marco da exposição. Trazida contra sua vontade da região do Congo, Xica enfrentou diversas violências, desde o trabalho escravo à negação de sua performatividade de gênero, sendo forçada a corresponder aos códigos de gênero masculino para sobreviver – fatos relatados em um documento reproduzido na exposição. Todavia, sua memória afirma o direito à vida e ao corpo, a ancestralidade de uma corporalidade que cada vez mais perfura os espaços de poder, como demonstra o percentual recorte de artistas trans nessa edição da Bienal.
Entre uma das proposições mais interessantes trazidas pela curadoria, estão as possibilidades de se pensar e vivenciar o tempo para além da concepção ocidental de temporalidade contínua e linear. Com base no pensamento de Leda Maria Martins, a curadoria e o núcleo de educação da Bienal trabalham com o conceito de tempo espiralar. Para além da concepção de um passado que condiciona e determina o presente, é possível entender o agora também como uma forma de transformação temporal, em que o passado pode ser revisitado e ressignificado.
É interessante, nesse sentido, pensar no papel da memória e da ancestralidade nos processos artísticos de muitos dos artistas presentes na exposição. Em Floresta de Infinitos, uma instalação que reconstrói um bambuzal no pavilhão, Ayrson Heráclito e Tiganá Santana evocam as forças e energias que guardam as florestas. Em um percurso de grande estímulo sensorial, é possível se perder em uma mata de onde surgem objetos e a aparição de imagens de guardiões homenageados pelos artistas, como Chico Mendes e mãe Stella de Oxóssi. Nesse espaço, a natureza e suas energias são rememoradas enquanto elementos essenciais para a vida humana, em uma relação que ultrapassa a noção de adentrar a mata, indo na direção de pertencimento à natureza.
Das ligações entre corpos humanos e natureza, outros artistas apresentam obras que enxergam tais vínculos também através do corpo e da espiritualidade. É o caso de Rosana Paulino, uma das mais importantes presenças da arte contemporânea, tanto por sua consistente produção artística quanto por sua pesquisa e influência para artistas, curadores e agentes da arte brasileira. A vida da mulher negra é o centro de suas pesquisas, nas quais desconstrói os estereótipos de hipersexualização e serventia construídos sobre seus corpos desde a colonização. Paulino traz à Bienal uma série de pinturas em grande escala de Mulheres-Mangue, vívidas e plenas, enraizadas e em harmonia com a fauna. Nessas obras, essas mulheres são também seres espirituais e integrados às forças da natureza.
Outro exemplo desse vínculo humano-sagrado é a obra de Citra Sasmita, artista que investiga o feminino através de uma ligação com o espiritual. Ressignificando o tradicional estilo de pintura Kamasan, que era utilizado pelos povos indonésios entre os séculos 15 e 18, a artista substitui o antigo protagonismo masculino por novas narrativas. No centro dessas representações, estão mulheres em múltiplos estados de renascimento e sofrimento, vinculadas à natureza em cenas de intensa continuidade.
O movimento e a inevitável transmutação da vida está presente também através de elementos não humanos, como no trabalho de Daniel Lie. Em Outres, instalação monumental desenvolvida para a Bienal, a ideia de coreografia é performada por agentes naturais como os fungos e a terra, assim como o processo de degradação de flores ao longo dos três meses de exposição. Nessa obra, o tecido muda de coloração em resposta à luz do sol, as plantas se decompõem, os fungos se multiplicam e os cheiros se proliferam pelo espaço. É possível então lembrar de que dos ambientes acolhedores aos mais hostis, existe uma resistência natural e um impulso da vida que foge à vontade humana.
O projeto expográfico desenvolvido pelo escritório de arquitetura Vão também é elemento marcante e fortemente integrado ao discurso, pensando nos desvios realizados pelos visitantes ao percorrer o tradicional Pavilhão desenhado por Niemeyer. Envelopando o vão do segundo andar, a expografia é insubordinada, sugere percursos até então nunca pensados (impossíveis) para esse espaço. Dessa forma, todo o pensamento curatorial ganha uma espacialidade correspondente às suas proposições.
Essa é uma exposição protagonizada por vidas e poéticas que da impossibilidade criaram estratégias de possibilidade e reconstrução. Construiu-se uma aliança de movimentos e compassos que, em rede, falam sobre lutas e insistência pela vida frente a sistemas baseados em violências. Todavia, sem esquecer da beleza de ser o que se é, irremediavelmente, em conjunto, cada vez mais.
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