No trabalho de Emanoel Araújo (1940 – 2022), correntes estéticas como o construtivismo foram exploradas de modo que expressassem temas fortemente relacionados com a realidade brasileira. Tanto a sua obra artística quanto a sua atuação como curador e pesquisador destacaram a importância da herança africana na cultura nacional.
O artista morreu no último dia 07 de setembro, em São Paulo, cidade-sede de seu museu. A maior do país e uma das maiores do mundo. Contraditória, multicultural e mais uma entre tantas onde, assim como Araújo, tantos negros fizeram de seu suor e intelecto herança.
Araújo nasceu em uma tradicional família de ourives – metalúrgicos especializados em metais preciosos. Ao longo de sua carreira foi artista plástico, escultor, desenhista, ilustrador, figurinista, gravador, cenógrafo, pintor, professor, curador, museólogo e gestor cultural.
Aprendeu marcenaria, linotipia e estudou composição gráfica na Imprensa Oficial de sua cidade natal, Santo Amaro da Purificação, Bahia – onde também realizou sua primeira exposição individual, em 1959. Na década seguinte, mudou-se para Salvador e ingressou na Escola de Belas Artes na Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Na UFBA estudou técnicas de gravura e produziu ilustrações, cartazes e cenários para teatro. Nesta época sobressaem-se em suas xilogravuras as texturas, com relevos, dobras ou rugas.
Já a partir de 1971, Araújo começou a criar obras abstratas conjugando formas geométricas. Ao olhar para as vertentes construtivistas, o artista passou a reduzir as formas de suas composições às estruturas primárias e incluir segmentos de outras gravuras colados sobre os planos de um gravura maior – produzindo cortes, interferências e justaposições. O interesse do artista pela tridimensionalidade começa a ser expressado a partir destas obras.
A cultura de origem africana passou a ser mais referenciada em sua obra a partir de 1977, quando Araújo participou da segunda edição do Festival Mundial de Arte e Cultura Negra e Africana (Festac ‘77) – realizado em Lagos, na Nigéria. Lá Araújo pôde estar em meio a artistas africanos e de outros países da diáspora afro-atlântica. A participação do artista baiano no festival foi um divisor de águas para sua carreira.
Após seu período em África, o artista pôde perceber que o minimalismo e a abstração presentes em sua produção traziam em si raízes que não eram europeias, mas sim africanas. Desde então, símbolos remetentes a entidades do candomblé e cores e formas atreladas à ritualidade das religiões brasileiras de raiz africana passaram a figurar suas obras mais diretamente.
Araújo, muitas vezes controverso ou contraditório, foi uma figura fundamental para o alavancar da arte negra no Brasil. Sem ser ativista, revirou as raízes dessa arte e fez de seu principal projeto escancara-las.
Em 2004, Araújo funda e inaugura – a partir de sua coleção particular – o Museu Afro Brasil, localizado no parque do Ibirapuera, em São Paulo. Foi diretor do museu desde a inauguração até o fim de sua vida.
Araújo comentou que a instituição é a concretização de décadas de pesquisa e exposições que exibiam “como negro quem negro foi e quem negro é no Brasil, de séculos passados aos dias atuais”. O fio condutor do projeto buscou registrar, preservar e argumentar a partir do vivido e observado pelo negro.
Tal experiência, concebeu Araújo, não se restringe ao Brasil e perpassa diversas sociedades afro-atlânticas que têm em sua história-comum o desenraizamento e a diáspora causadas pelas investidas escravocratas. “Assim, assumindo essa perspectiva, o Museu Afro Brasil, sendo um museu brasileiro, não pode deixar de ser também um museu das sociedades afro-atlânticas no Novo Mundo”.
À frente do Museu Afro Brasil, Araújo se empenhou principalmente em valorizar e difundir a produção artística da população negra. Levou ao seu programa museológico a preocupação de contribuir com a formação educacional, artística, intelectual e moral de cidadãos brasileiros, negros e brancos, para o benefício das gerações futuras. Durante sua gestão no Museu Afro Brasil, foi curador da exposição “Africa Africans”, premiada como melhor exposição de 2015 pela ABCA.
O museu conta com milhares de peças organizadas em núcleos – não necessariamente cronológicos – que buscam representar a colaboração negra no Brasil e no mundo.
Antes de inaugurar o Museu Afro Brasil, Araújo já havia ocupado a direção de instituições importantes. Assumiu o cargo de diretor da Pinacoteca do Estado de São Paulo em 1992, onde ficou por dez anos. Sua gestão comandou eventos importantes, como a grande reforma do edifício da Pina Luz, que contou com o projeto do arquiteto Paulo Mendes da Rocha. Na época, o prédio se encontrava em condições muito precárias. O projeto foi responsável por deixar a Pinacoteca em seu estado atual.
Em outra contribuição notável de Araújo enquanto gestor, o acervo da Pina ganhou ainda mais peso e relevância, crescendo em número e incorporando diversos artistas afro-brasileiros. Até a inauguração do Museu Afro Brasil, a Pina – sob a supervisão de Araújo – foi o museu brasileiro com a maior presença de artistas negros em sua coleção. A programação também passou a apresentar maior diversidade de artistas, inclusive internacionais – como a grande mostra de Auguste Rodin em 1998 responsável por recorde de visitantes.
Antes da Pinacoteca, Araújo já havia sido diretor do Museu de Arte da Bahia (MAB), o museu mais antigo e, também, o primeiro espaço museológico público do Estado – inaugurado em 1918. Sob sua gestão, o MAB foi transferido para a sua atual sede, o Palácio da Vitória. O artista esteve à frente da instituição de 1981 a 1983.
Araújo foi um artista de grande reconhecimento. Realizou sua primeira exposição individual na Bahia, em 1959. Em 1981, Araújo expôs individualmente no Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp). Seu reconhecimento fez com que fosse convidado para lecionar artes gráficas e escultura na City University of New York em 1988 para ser membro convidado da Comissão dos Museus e do Conselho Federal de Política Cultural – instituídos pelo Ministério da Cultura – em 1995 e 1996.
Sem dúvida um dos grandes artistas que tivemos, Araújo foi agraciado com uma gama de premiações. Entre eles estão a medalha de ouro na 3ª Bienal Gráfica de Florença, o Prêmio Ciccillo Matarazzo – concedido pela Associação Brasileira de Críticos de Arte e a Medalha Zumbi dos Palmares pela Câmara Municipal de Salvador.
Araújo se preocupou em narrar uma história da saga africana, desde a tragédia da escravidão até os nossos dias. Sua contribuição para a arte no Brasil é inegável e seu legado é levado adiante não só, mas também, pelos inúmeros gestores e artistas – principalmente negros – que estiveram sob sua gestão e influência.
Matheus Paiva é produtor cultural e internacionalista, formado pela Universidade de São Paulo.
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2 Comments
Conheci Emanoel Araújo, que figura simpática, trabalhei com ele como auxiliar de figurinista, numa peça teatral!! Pessoa admirável e muito querida. Encontrei com ele no saguão da filosofia, na USP numa tarde enquanto aluna do curso. Ele não sabia que eu estudava lá, foi surpreendente a reação dele. Ele fez um gesto muito peculiar de admiração, um trejeito que queria dizer , dizendo : que chique!! Rimos muito !!! Lindo ele!! Tão talentoso em suas artes, curador na época da pinacoteca, me dizia como ele queria que fossem feitos o figurino, eu em particular fazia mesmo os chapéus femininos de época. Muito despojados, tecidos rasgados sem acabamentos, um luxo artístico. Nas roupas masculinas, capas todas retalhadadas e soltas sem costuras, só presas no ombro!! Nosso trabalho corria leve e solto ! Belas lembranças !! Arlete
Arlete, belíssimo relato! Obrigada por compartilhar sua experiência conosco!