Consolidada por uma carreira de mais de quatro décadas, a artista paulistana Lenora de Barros ganha uma exposição panorâmica na Pinacoteca de São Paulo, com curadoria de Pollyana Quintella. Com cerca de 40 obras, “Lenora de Barros: Minha Língua” ocupa três salas interligadas no 2º andar do prédio principal da Pina, ao lado do Parque da Luz.
Quem conhece o emblemático trabalho Procuro-me (2002), exposto em diversas instituições e em diferentes contextos no Brasil, já teve contato com as ideias centrais na poética de Lenora de Barros. Provavelmente seu trabalho mais popular, ele exemplifica a relação da artista com as palavras e uma performatividade própria em uma longa trajetória na arte.
Para quem ainda não conhece a artista, a exposição é uma excelente chance de ter uma visão ampla da sua obra, além de se aproximar de questões tão bem trabalhadas por muitos artistas no Brasil: os encontros e desencontros entre as artes visuais e outras linguagens, como os códigos da escrita e a oralidade.
Vista da exposição. Foto: Diogo Barros.
A palavra, ao passo que define um objeto, evoca na mente uma imagem. Em muitos trabalhos, Lenora esgarça os limites das definições de uma palavra diretamente relacionada à linguagem, como a língua, o silêncio, a fala ou a “coisa”. Nessas investigações, a artista usa a ambiguidade, a contradição ou a literalidade como processo artístico. Em todo caso, abre-se um novo campo de possibilidades em torno de símbolos que cotidianamente são usados sempre da mesma forma.
A presença da língua no próprio título da exposição sinaliza o que pode ser descoberto em diversos momentos ao longo da visitação: a língua, para Lenora, vai de órgão que cumpre inúmeras funções corporais a idioma e comunicação, ou ainda se torna objeto gerador de sentidos.
A língua da artista aparece em obras mais performáticas como “Poema” (1979-2014), uma sequência de fotografias apresentada na vertical, na qual Lenora tem sua língua tomada pela estrutura interna de uma máquina de escrever. Já em “Linguagem”, a artista registra a textura de sua língua em fotografias entre 1990 e 2022.
Em alguns momentos, a investigação da artista é apresentada através de uma descontinuidade, onde as palavras e imagens não necessariamente precisam formar uma sentença, mas podem produzir sentidos de forma independente ou compartimentada.
Os “ping-poems”, por exemplo, constituem-se em palavras impressas em bolinhas de ping-pong, instaladas sobre placas de acrílico, centralizadas no alto da sala. Entre as palavras impressas individualmente nas bolinhas – também recitadas por Lenora em instalação sonora -, estão “nada”, “deve” e “ver”, que podem ser lidas em diversas ordens conforme o visitante circula o espaço expositivo e olha para cima. As bolinhas também aparecem em séries fotográficas com outras frases, como em “Coisa de nada” e “Coisa em si”, ambas de 1990.
Uma seleção de trabalhos produzidos para a coluna “…umas” entre 1993 e 1996 no Jornal da Tarde, de São Paulo, mostra como as proposições de Lenora com a poesia concreta e experimental se configuraram nesse espaço midiático, alcançando públicos para além do campo das artes visuais. Trazendo trabalhos autorais e de outros artistas, Lenora utilizou a coluna para experimentar as linguagens da poesia, da fotografia e até mesmo brincar com gêneros jornalísticos.
Em “Ri-chora” (1975-2017), Lenora brinca com a proximidade entre a risada e o choro, espelhando o texto que transcreve um áudio no qual a artista encena os dois estados emocionais.
As emoções e o humor estão presentes em muitos trabalhos da artista, que cria situações e personagens a partir da própria imagem. Elaborando composições com símbolos, peças de lã, gorros e os mais variados objetos, como o fósforo, Lenora propõe inúmeras versões de si, aproximando-se do fantástico, mas sem sair do mundo ordinário.
A linguagem nomeia o corpo, o define e o comunica. Ao mesmo tempo que o corpo, na poética de Lenora de Barros, está em um movimento constante de desestabilização dessas linguagens que não o comportam.
Em “A cara. A língua. O ventre.” (2022), vídeo comissionado para a Pinacoteca, a artista modela uma língua em argila e a alisa em repetidos movimentos para frente, como o movimento da fala, do interno ao externo, até que a língua se parta ao meio. No mesmo vídeo, a artista usa as mãos para inserir três furos em uma outra massa de argila, formando uma máscara, até que as formas que sinalizam um rosto se desfazem.
Um ponto forte presente em muitos trabalhos é o emprego da gestualidade bruta, especialmente no uso de ferramentas que ferem os materiais e testam os limites da palavra. O martelo, o prego, a faca, ou até mesmo o plástico que suprime o rosto da artista são ferramentas utilizadas nesses entraves que Lenora se coloca contra a matéria.
Sem uma ordem linear para visitação, a exposição pode ser acessada por diferentes entradas. Instalações sonoras no espaço espalham a voz da artista recitando seus poemas, promovendo uma maior contaminação de suas ideias.
Ao encontrar obras que abarcam diferentes momentos da trajetória da artista, é possível entender as múltiplas relações que ela estabelece com o corpo, compreendendo como ele pode ser mediado pelas linguagens. Lenora acompanhou essas mediações através dos avanços tecnológicos e toda sua obra continua atual, oferecendo novas possibilidades de decodificação e desconstrução das linguagens, das mais convencionais às mais experimentais.
Diogo Barros é curador, arte educador e crítico, formado em História da Arte, Crítica e Curadoria pela PUC SP.
Serviço
Lenora de Barros: minha língua
Período: 08.10.2022 a 09.04.2023
Curadoria: Pollyana Quintella
Edifício Pinacoteca Luz
Praça da Luz, 2, São Paulo, SP, 2º andar
De quarta a segunda, das 10h às 18h.
Gratuitos aos sábados
R$ 20,00 (inteira) e R$ 10,00 (meia-entrada)Ingressos no site www.pinacoteca.org.br ou na bilheteria do museu
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