Pioneiro no mercado da moda, o estilista carioca Lucas Leão foi o primeiro brasileiro a comercializar peças digitais que podem ser “vestidas” por meio do metaverso. Em seu primeiro desfile físico desde o começo da pandemia, realizado em 2021, proporcionou uma experiência em realidade aumentada para a plateia do desfile. Com um filtro desenvolvido para o Snapchat, quem apontasse seu celular para a passarela podia visualizar os looks e a cenografia sob novas camadas, complementares ao que acontecia “ao vivo”. As telas dos celulares revelavam, assim, texturas e cores sobrepostas ao meio físico. A marca também traz para seus trabalhos materiais inusitados, como as peças de cerâmica desfiladas na SPFW N54, em 2022.
“Eu já sabia que ia fazer algo ligado à comunicação não-verbal, à comunicação com imagens”, comenta o estilista sobre a escolha pelo mundo da moda, já à época de seu ensino médio. “Ter uma família de alfaiates me influenciou muito. Meus avós eram alfaiates. Então eu cresci vendo como uma roupa era produzida com esmero, como era trabalhada até aquela arquitetura vestível ficar pronta”.
Leão também aponta os antigos desfiles de Galliano na Dior como uma fonte de inspiração. “O escapismo, a possibilidade de criar um mundo que não existe para, de fato, conseguir encarar o mundo real em que vivemos”. O estilista inglês, John Galliano, foi diretor criativo da grife entre os anos de 1996 e 2011. Seus desfiles ficaram conhecidos por suas peças teatrais e mostruários dramáticos. As relações interpessoais e os acontecimentos cotidianos também inspiram o trabalho de Leão, que aborda, a cada coleção, novas temáticas e reflexões sobre o mundo em que vivemos.
As coleções da grife Lucas Leão possuem trabalhos colaborativos com diversos artistas com diferentes expertises. “A gente, internamente, faz uma pesquisa, fica imerso, entende qual vai ser o tema que queremos abordar, que a gente quer discutir na coleção, e depois esse macro-tema é passado para os artistas”. Neste processo, cada artista pode tangenciar em sua criação o tema central, agregando novos olhares ao processo criativo. Em sua última coleção, a marca tem criado peças de cerâmica a partir de um trabalho desenvolvido junto de Luiza Navarro, que já possui outras produções e esculturas com o material.
Sobre essa coleção, Leão comenta que “a escolha da cerâmica foi feita porque a gente trabalha muito com a tecnologia. A gente desenvolve tudo em 3D, isso facilita muito pra gente. Só que existe uma dualidade. A gente tem a facilidade de produção disso no software 3D, mas a gente acredita também no manual, no toque”. Ao se referir à preferência da marca na produção manual das peças e também suas inspirações de família, o estilista complementa como o processo criativo revela esse “novo ecossistema de tecnologias que vieram para ajudar a indústria, principalmente as pequenas marcas. E, em contraste a isso, a valorização desse registro do toque. Do modelar à mão. Do registro da mão, do manual das peças. Acho que a gente escolheu a cerâmica e a Luiza por causa desse elemento”.
Os desafios do trabalho com a cerâmica existem e Leão encara com naturalidade, afinal, este não é o primeiro material inusitado com o qual a marca já lidou; há, por exemplo, o vidro de sopro. São processos e desafios encarados sem medo. “Cada coleção é um perrengue diferente”, comenta. A colaboração com artistas de diferentes expertises é o que possibilita o uso de diversos materiais.
Estes exemplos demonstram como o uso da tecnologia e do meio digital por Leão é feito como uma extensão do mundo físico e não como sua anulação. Suas ações em realidade aumentada são marcos dessa visão expansiva e possibilitadora. “A gente usa a tecnologia para complementar o que a gente pode fazer”, reflete.
Desde o começo de seu envolvimento com a realidade aumentada, em 2018, a marca já produziu diferentes experiências de fruição de seus produtos e desfiles. Desde o desfile com as extensão de proposta através do celular a estampas 3D. “Eu acho que é muito sobre o que a marca é pautada. Sobre acreditar que existe esse nosso mundo, mas criar um outro mundo paralelo para conseguir sobreviver no que estamos. Acho que a tecnologia é muito sobre isso. Sobre esses mundos paralelos que são criados”.
Ações que misturam o mundo digital e o mundo físico, muitas vezes chamadas de phygital (amálgama de physical e digital, do inglês), explodiram com o retorno gradativo do distanciamento da pandemia. Continuando a explorar esse universo, a marca Lucas Leão criou um provador utilizando tecnologia XR, vanguarda no que se trata de realidade aumentada. “É um provador, um espelho imersivo enorme. Onde a pessoa, quando fica na frente desse espelho, consegue tanto provar uma peça digital quanto interagir com essa peça”.
Os demais artistas que participam dos projetos da marca são destaques por si só. Gabriel Massan – com quem Leão começou a trabalhar explorando as possibilidades da realidade aumentada – é um destaque. Massan hoje está em exposição – sua primeira individual – no Serpentine North Gallery, em Londres, com texto de Jota Mombaça. Com uma obra em formato de videogame: Third World: The Bottom Dimension traz um universo inteiro que Gabriel construiu para fazer uma crítica decolonial sobre o mundo que já existe. Massan criou por volta de 70 esculturas digitais para o game. “Em 2018 eu comecei a ver o trabalho do Gabriel e a me fascinar. Tive muita inspiração nele”.
JE Kos, artista natural de Brasília, com quem Leão já trabalha há alguns anos, terá exposição no BRIFW Wired Conference, em São Paulo, no dia 01 de novembro. O estilista assina o texto da exposição de JE Kos, que criou estampas para as coleções de sua marca. Ao comentar sobre a produção artística da brasiliense, Leão afirma: “a sofisticação do seu olhar, sua capacidade de equilíbrio, composição e proporção se misturavam a um interesse genuíno por tudo que era estranho, muitas vezes bizarro e grotesco. Como todo artista autêntico, ela mostra em seus processos, coragem. Não tem medo da tinta, não teme a fotografia, encara ferramentas generativas com a mesma elegância que desenha à mão. Seus trabalhos, assim como sua biografia, são enviesados, múltiplos, experimentais. Suas flores não são flores, suas linhas não são linhas, seus objetos não caem na mesmice do real”.
O trabalho de Lucas Leão é representativo das possibilidades criativas dentro da moda. Materiais, conceitos, colaborações artísticas e interdisciplinares e tecnologia. Seu processo criativo segue na direção da pluralidade – seja por suas peças sem gênero ou pelas várias mãos e cabeças envolvidas, ativamente, nas criações de cada coleção. Esse caminho aproxima e conecta as passarelas e experiências criadas por sua marca com outros mundos sensíveis permeados por diversas formas artísticas. Retomando o trabalho com JE Kos, Leão expõe a forma como encara seu trabalho em relação à arte: “se alguém nos pergunta se o que fazemos é arte, respondemos que a dúvida é nossa melhor resposta”.
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