É possível ouvir uma cor? Ou ver uma nota musical? A música e a pintura se materializam de forma diferente, ativando os sentidos de visão e audição separadamente. Mas um observador atento pode notar que elementos visuais têm o potencial de evocar ritmo, enquanto uma composição melódica pode despertar sensações que levam a percepção de cor e forma.
Wassily Kandinsky, precursor do abstracionismo na arte, escreveu em “O Efeito da Cor”, em 1911, que os efeitos das cores podem ser físicos. Observar uma paleta de cor promove uma sensação física, os olhos são estimulados ao ponto de experimentar prazer e satisfação como o paladar é estimulado por uma comida saborosa. Ou, ainda, o olhar pode ser tensionado como a língua que prova um prato picante. A sensação física da cor proposta por Kandinsky se refere também aos sons. “O som da cor é tão definido que seria difícil encontrar alguém que expressasse um amarelo brilhante com notas graves, ou um lago escuro com notas agudas”, escreve. No caminho da sinestesia se torna possível relacionar diferentes linguagens artísticas e experimentar a arte através de uma combinação de sentidos.
A música e a pintura podem, cada uma à sua maneira, expressar uma mesma cultura popular que não se apoie em uma representação direta, mas que se escondem nos contextos históricos nos quais se inserem, nas vidas de cada um de seus autores ou até mesmo nos significados e significantes que cada peça de arte adquire ao longo de sua própria história como produto artística e cultural.
No caso da exposição “FUNK: Um grito de ousadia e liberdade”, temos a música e a pintura como expressões da cultura permeada pelo universo do funk. Em cartaz até 24 de agosto de 2024 no Museu de Arte do Rio (MAR), a exposição tem curadoria de Taísa Machado e Dom Filó, em conjunto com a equipe do museu, e conta com a colaboração de consultores como Deize Tigrona, Celly IDD, Tamiris Coutinho, Glau Tavares, Sir Dema, GG Albuquerque, Marcelo B Groove, Leo Moraes e Zulu TR.
“O movimento é soberano nessa exposição”, comenta Taísa Machado, em entrevista para a Artsoul. A influência do funk enquanto música está presente no movimento que as pinturas da exposição adotam por composição. “A pulsação comum ao funk, que mexe o corpo, que dá ritmo ao dia a dia está presente. Há um sentido de liberdade que a música expressa que também encontramos nas obras, você olha para os quadros e rapidamente eles te transportam para um cenário onde o movimento, a liberdade e uma dose de caos convivem em harmonia, no qual a obra vira baile e o baile vira obra”.
Além da impressão de movimento evocada pelo ritmo, há elementos específicos da estética funkeira representados nas obras da exposição. “Camisas de time, óculos juliete, o clássico shortinho e top, a dança como elemento estético são alguns exemplos” afirma a curadora. A seleção das obras buscou reunir o máximo de artistas que registraram a memória e a vivência do funk e que as traduzem em suas obras. Machado comentou sobre o movimento do “Crialismo”, que imprime essa vivência no contexto contemporâneo carioca. “A tentativa foi de mostrar o funk em 360 graus mostrando que muito além de música ele também influencia no comportamento, na moda, na criação contínua de tendências que se espalha do Rio de Janeiro pro restante do Brasil e em cada região atinge sua própria característica”.
A exposição conta com duas salas, na primeira está exposta principalmente a história da chegada da música soul no Rio de Janeiro, e na segunda estão obras dessa cena contemporânea descrita por Machado. A proposta da curadoria é mostrar o desenvolvimento não só do funk – como ritmo musical nascido dos bailes black soul cariocas – mas também de sua estética desde o fim dos anos 70, no contexto da soul music, até os dias de hoje. “A música nunca é só música, ela representa uma filosofia, uma forma de enxergar a vida (…)”, comenta. Por esta razão, a presença de Dom Filó como curador é essencial para reunir e resgatar esses movimentos musicais junto de suas próprias expressões estéticas que de alguma maneira influenciaram o funk. Machado ressalta como essa encruzilhada de tempos traz à tona experiências e identidades inerentemente pretas. “O DNA do funk é preto”, completa.
A cultura funk é reiteradamente marginalizada no Brasil, “por isso é tão importante colocar o funk no lugar de produto cultural e artístico de máxima potência e qualidade porque ele imprime a abundância de vida que existe nas favelas e periferias”. Levar para as salas do museu obras de artes plásticas que retratam a experiência vivida dessa cultura e das pessoas que a compõem é um marco na história do MAR.
Uma outra experiência pode ser vista gratuitamente pelo público em São Paulo. O Museu de Arte de São Paulo (MASP) e a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP) em parceria iniciada em 2015, realizam o projeto “Concertos OSESP MASP”. A série de concertos visa estabelecer diálogos entre a arte e a música, relacionando similaridades estéticas e históricas. Para cada apresentação é escolhida uma obra do acervo fixo do MASP que é, então, comentada por um especialista convidado, responsável por fazer a conexão entre as obras de arte da coleção do museu com as peças interpretadas pelos músicos da OSESP.
A ação não é uma novidade. “Relacionar arte e música é uma tendência antiga de instituições de arte”, aponta Cadu Riccioppo, curador e crítico de arte – e também um dos especialistas convidados pelo projeto. O curador comenta que tais ações visam tirar as obras de arte de seu lugar comum, trazendo novas movimentações e abordagens sobre essa produção artística. A proposta dos concertos OSESP MASP, em específico, encontra-se em levar ao público geral diálogos entre a música e as artes plásticas que não seriam óbvias em outros formatos.
Riccioppo revela que a seleção dos repertórios não tem uma regra metodológica pré-estabelecida para relacionar as obras visuais selecionadas e as peças interpretadas pelos músicos. “Às vezes é uma questão de buscar entender conexões estéticas, outras vezes buscamos conexões históricas possíveis entre elas, ou ainda, mergulhamos em uma determinada produção de um artista e também uma determinada produção de um compositor”. Não há necessariamente a correspondência direta de elementos formais das artes plásticas com elementos formais da música, algo que estaria mais próximo à Kandinsky e ao MAR. Riccioppo comenta que o diálogo do repertório com as obras também pode ser feito como contraponto ou revisão histórica da leitura que se faz de cada obra.
As três situações demonstram que sempre há alternativas para a leitura de um trabalho artístico, seja ele visual ou sonoro, e cada vez mais as instituições se abrem para projetos como esse, que despertam no público um olhar ampliado e crítico.
Quando perguntado sobre a recepção do público, Riccioppo vê que “se tem algo que marca o caráter bem sucedido do projeto é o fato de que as duas artes saem do seu lugar altamente isolado, altamente autônomo – privado ou isolado – com relação à dimensão pública. Na brincadeira de tentar juntar uma com a outra, as duas se abrem para serem percebidas de modo distinto”.