A grandiosidade da Bienal de São Paulo é justificada: é o maior evento de arte contemporânea fora da Europa desde 1951 até os dias de hoje. Foi, também, o maior movimento de caráter internacional no circuito artístico do Brasil da época, incluindo o país no mapa cultural do mundo. Em seu auge trouxe uma obra nunca antes exposta na América Latina: a tela Guernica cedida pelo próprio artista, Pablo Picasso, a despeito do receio do MOMA em transportar a obra para um país distante. Mas para além das muitas curiosidades das edições da Bienal de São Paulo, há uma história de pioneirismo e profissionalização do campo cultural nacional.
O ano é 1951 e a Bienal abre as portas para sua primeira edição. No disputado mirante do Trianon, onde hoje é o vão do MASP, Ciccillo Matarazzo, com seu português misturado em sotaques italiano e francês, indicando sua origem europeia¹, consolida o projeto de uma exposição internacional que permanecia em seu radar desde 1948 quando foi convidado para compor o júri da Bienal de Veneza.
Foi a experiência de Veneza que o levou a imaginar para o Brasil uma importância semelhante. A primeira participação da delegação brasileira em Veneza foi em 1950, organizada por Ciccillo no comando do MAM, já sinalizando no texto de apresentação o projeto que se teria no ano seguinte: uma Bienal aos moldes de Veneza.
A criação da Bienal se alinha às demandas políticas de industrialização no Brasil e um cosmopolitismo cultural por parte dos movimentos modernistas que queriam o país presente no diálogo internacional das vanguardas europeias.
O que se tinha no Brasil eram discussões de um projeto de nação que vivia desde a Semana de Arte Moderna de 1922 com obras que incorporavam as discussões formais presentes na Europa como as de Anita Malfatti e Lasar Segall, por exemplo.
O caráter de ruptura com os modelos de arte vigentes já se manifestavam por aqui. O que faltava era a consolidação desse acervo, uma vez que ainda muito revolucionária para os padrões da época, se via de certa forma impedido de integrar os acervos nacionais de belas artes que se voltavam para o retrato nos moldes clássicos do Brasil colonial.
Foi daí então que se pensou a criação das duas principais instituições brasileiras: o Museu de Arte Moderna, sob comando de Ciccillo Matarazzo e o Museu de Arte de São Paulo, sob comando de Chateaubriand. Os dois, imbuídos do compromisso de celebrar a arte moderna e alinhados aos movimentos internacionais, fundam essas instituições para incluir e representar a arte moderna brasileira.
Uma vez empreendida essa tarefa, agora era hora de colocar essa arte em contato com o resto do mundo com uma exposição que desse conta de exercer o intercâmbio entre as produções. A Bienal tinha o projeto de “conquistar para São Paulo a posição de centro artístico mundial” ², o que de fato aconteceu e tornou a cidade um pólo cultural referência na América Latina.
As primeiras edições foram voltadas para as manifestações modernas de contestação dos padrões figurativos tradicionais. Eram discussões mais formalistas como as da arte abstrata em que a pintura se questionava em relação à representação do mundo e as experimentações materiais possíveis. Foi um marco para o início de uma nova era no Brasil.
O projeto de um evento conectado com o que há de mais novo nas discussões do circuito é bem sucedido até hoje, visto que todas as edições da Bienal de São Paulo apresentaram cada uma as erupções de seu tempo.
Pensando para além dos já notórios destaques da Bienal do Boicote ou da Bienal do Vazio, vale destacar a estrutura com a qual se organizaram as várias edições da Bienal e como contribuíram para a formação dos setores que hoje exercem papel fundamental nas instituições culturais.
A segunda edição do evento fez parte do que se poderia chamar de profissionalização do circuito. Para cumprir uma demanda de acessibilidade ao público que não estava integrado às discussões da arte plástica, foi formada uma equipe de monitores, sob orientação do historiador Wolfgang Pfeiffer, para guiar os visitantes pela exposição. Essa iniciativa pedagógica se manteve e se tornou uma espécie de referência para a formação dos setores educativos de instituições culturais.
A 16ª edição, de 1981, se destaca ao trazer a figura do curador-geral em Walter Zanini. O historiador da arte foi o primeiro a exercer essa função na trajetória da Bienal e inverteu a maneira como a expografia era pensada. Até então divididas em delegações, as obras ficavam reunidas por países. Com a proposta de Zanini, as obras foram pensadas a partir de seus diálogos estéticos e de linguagem, fazendo a curadoria se tornar um exercício de criação de discurso e interpretação crítica das obras.
Historiador da arte Walter Zanini – Imagem: Bienal de São Paulo
Na edição seguinte, também de curadoria de Walter Zanini, a programação se intensifica na pluralidade das linguagens com as performances, vídeos e happenings que ganhavam força na década de 80. A participação do artista Keith Haring foi um dos pontos altos. O artista trouxe o desenho urbano nova-iorquino para o evento influenciado pelo boom da linguagem televisiva e midiática que invadia o cotidiano estadunidense, tema que se relacionava com as obras de grandes artistas como Andy Warhol e Basquiat.
A Fundação Bienal comemora em 2021 seus 70 anos de atuação. São 34 edições que desenvolveram gradativamente as linguagens em ascensão no circuito internacional, seja em termos de linguagem ou de inclusão. Na presente edição se destacam, por exemplo, um número inédito de artistas indígenas, com 5 nomes brasileiros e 4 de outros países, numa tentativa de passar a representatividade aos povos indígenas que antes tinham suas narrativas apresentadas por artistas brancos.
Também pela primeira vez na história da instituição, foi lançado um catálogo exclusivamente digital composto por intervenções gráficas indicadas pelos 91 artistas desta edição.
É nesse caminho que a Bienal continua a ser o reflexo do Brasil e um canal para entendermos o nosso tempo, como diz o curador-geral Jacopo Crivelli Visconti: “por meio de seu título, a 34ª Bienal reconhece o estado de angústia do mundo contemporâneo enquanto realça a possibilidade de existência da arte como um gesto de resiliência, esperança e comunicação”.
Cartaz de divulgação da 34ª Edição da Bienal de São Paulo – Imagem: Bienal de São Paulo
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Victoria Louise é crítica e produtora cultural, formada em Crítica e Curadoria e Gestão Cultural pela PUC-SP
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REFERÊNCIA:
1 – A antítese do Brasil de Nicolau Sevcenko, publicado na Folha de S. Paulo em 20 de maio de 2021
2 – A construção de um projeto para a arte no Brasil: a gênese da Fundação Bienal de São Paulo – Verena Carla Pereira
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