Séculos de colonização e seus impactos na cultura são debatidos com a força de artistas latino americanos e outras regiões periféricas na maior exposição de artes do mundo. A expressão ancestral de coletivos indígenas como o Makhu, o legado incontornável de Anna Maria Maiolino na arte contemporânea, o modernismo à brasileira de Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti e Portinari, assim como a geometria viva de Beatriz Milhazes, são alguns dos destaques brasileiros na 60º edição da Bienal de Veneza. Diversos e particulares como o vasto território brasileiro, esses e outros artistas exemplificam o diálogo da produção nacional com outras realidades do mundo em uma Bienal que exalta a união do Sul Global.
No final de 2022 a Bienal de Veneza anunciou Adriano Pedrosa como diretor do setor de artes visuais de sua 60ª edição. Pedrosa é o primeiro curador latino americano a ocupar essa posição, e o anúncio foi seguido por comemorações. Nos últimos anos, o curador esteve à frente dos ciclos anuais temáticos do MASP – contemplando exposições coletivas e individuais, seminários, cursos e outras atividades, cada ciclo é dedicado a contar “Histórias”.
A maioria das histórias levantadas com a direção de Pedrosa tratam de reescrever e difundir narrativas não hegemônicas. Alguns exemplos são as Histórias Afro-Atlânticas (2018), que junto ao Instituto Tomie Ohtake reuniu 214 artistas para discutir os trânsitos sócio-culturais entre a África, as Américas, o Caribe e a Europa; as Histórias Indígenas (2023), que apresentou no ano passado diferentes visões das culturas indígenas da América do Sul, América do Norte, Oceania e Escandinávia; e o atual ciclo Histórias da diversidade, que lança luz sobre produções artísticas relacionadas ao universo LGBTQIA+, com exposição coletiva prevista para dezembro.
Já era esperado que a linha de trabalho de Pedrosa desenvolvida nos últimos anos fosse refletida em sua curadoria na Bienal de Veneza. O título da exposição Stranieri Ovunque – Foreigners Everywhere, (Estrangeiros em todo lugar, em tradução livre) parte de uma série de letreiros em neon do coletivo Claire Fontaine, sintetizando o esforço curatorial de expandir os critérios legitimadores da arte a partir de artistas que vivenciam deslocamentos em suas realidades, considerando um constante estado de sentir-se estrangeiro.
Dando boas-vindas à exposição, a fachada do Pavilhão Central dos Giardini foi pintada pelo coletivo indígena Makhu (Movimento Dos Artistas Huni Kuin). Os 750 metros quadrados foram tomados de pinturas que representam visões dos rituais sagrados ayahuasca. Especificamente em Veneza, a história contada é “kapewë pukeni”, a ponte do jacaré, que conta sobre a separação das pessoas e lugares no planeta. O coletivo foi destaque na programação das Histórias Indígenas no MASP no ano passado, apresentando pinturas e preenchendo as rampas do subsolo da instituição.
A exposição principal curada por Pedrosa é dividida nos núcleos Contemporâneo e Histórico. Partindo do conceito estruturante de estrangeiro, o curador ampliou ligações temáticas para traçar sua linha curatorial, incluindo as temáticas queer, indígenas, arte popular e outras que se encaixam na borda do sistema oficial das artes. No Núcleo Contemporâneo, obras de brasileiros nativos ou radicados no Brasil, partindo de diferentes gerações, contextos e linguagens, ajudam a compor essa constelação, como Claudia Andujar, Manauara Clandestina, Anna Maria Maiolino, Dalton Paula, Rubem Valentim, Joseca Mokahesi Yanomami.
Beatriz Milhazes é destaque com participação exclusiva no Applied Arts Pavilion (Pavilhão de artes aplicadas, em tradução livre). Com curadoria de Pedrosa, a artista apresenta um conjunto de sete pinturas e sete colagens de grande escala, compartilhando bons exemplos de estudos em cores e composições geométricas desenvolvidas ao longo de sua carreira. O projeto especial deste pavilhão é fruto de uma parceria entre a Bienal de Veneza com o Victoria and Albert Museum (V&A), chegando agora à sua oitava edição.
Já no Núcleo Histórico, os modernismos do Sul Global configuram a veia central da narrativa. Artistas que influenciaram a difusão da arte moderna em países para além da Europa – conhecida como o berço modernista – são divididos nos núcleos Retratos, Abstrações e Italians Everywhere – representando a diáspora da arte italiana no século XX -, esse último exposto nos famosos cavaletes de cristal de Lina Bo Bardi.
Concentrando pinturas, desenhos e esculturas, o conjunto de Retratos reúne em duas salas as obras de 112 artistas, incluindo pinturas de Tarsila do Amaral, Emiliano Di Cavalcanti, Djanira da Motta e Silva, Cícero Dias, Ismael Nery, Candido Portinari, Yêdamaria, e uma escultura de Maria Martins. Este eixo curatorial expõe de forma objetiva as representações de uma gama de etnias ao redor do mundo, partindo do olhar de artistas locais. O grande núcleo pode ser visto, portanto, como uma resposta às representações estereotipadas que foram produzidas pelos artistas europeus a partir do contato com outros continentes na era moderna.
Entre os 37 artistas presentes no núcleo de Abstrações, encontram-se obras de Judith Lauand, Tomie Ohtake e Ione Saldanha. Essa parte da exposição valoriza geometrizações orgânicas que fogem do cânones da arte abstrata européia. Os Bambus de Ione Saldanha, por exemplo, extrapolam as definições e separações entre pintura e escultura, com uma instalação que pede atenção tanto por sua propriedade tridimensional, como pela recepção visual das cores.
Em Italians Everywhere, o trânsito cultural entre a Itália e outros países é celebrado através de obras de artistas como Lina Bo Bardi, Maria Bonomi, Victor Brecheret, Waldemar Cordeiro, Danilo di Prete, Amadeo Luciano Lorenzato, Anna Maria Maiolino, Anita Malfatti, Fulvio Pennacchi, Maria Polo, Eliseu Visconti, Alfredo Volpi.
A Bienal de Veneza possui, além da exposição principal, as representações nacionais, com um pavilhão para cada país participante. Comissionada pela Fundação Bienal de São Paulo, a curadoria do pavilhão brasileiro – nesta edição nomeado Hãhãwpuá-, fica a cargo dos artistas e pesquisadores Arissana Pataxó, Denilson Baniwa e Gustavo Caboco Wapichana.
“Hãhãwpuá” é o nome dado pelo povo Pataxó ao território colonizado hoje conhecido como Brasil – o termo também é traduzido como território ancestral. Para essa edição, o trio curatorial convidou Glicéria Tupinambá, Olinda Tupinambá e Ziel Karapotó a apresentarem suas obras na exposição intitulada Ka’a Pûera: nós somos pássaros que andam. O nome da exposição faz referência tanto ao novo ciclo de vida das florestas após serem desmatadas pelos Tupinambá para produção agrícola, como a uma ave que vive em matas densas e nelas se camufla.
Utilizando diferentes mídias e materiais, como instalação composta de redes, vídeo e a própria presença de um manto Tupinambá, os três artistas discutem a resistência e resiliência dos povos originários frente a suas lutas. Nesse contexto, a curadoria reafirma o Brasil como Hãhãwpuá, uma terra indígena, com uma força especial ao ser apresentada na maior e mais antiga Bienal de artes do mundo.
Na ocasião de abertura da Bienal, Olinda Tupinambá e Ziel Karapotó realizaram uma performance ritualística, tendo o corpo como centro da ação e, segundo Olinda, baseada no entendimento do seu corpo como político. A performance é um desdobramento da poética de seus trabalhos presentes no pavilhão nacional, que através do vídeo, surge pintada de urucum, ressoando a entidade Kaapora, enquanto lê uma carta-denúncia direcionada à humanidade.
O legado da arte contemporânea brasileira ganhou uma nova conquista com a nomeação de Anna Maria Maiolino para receber um Leão de Ouro pelo conjunto de sua obra. A artista ítalo-brasileira e Nil Yalter, artista turca também premiada, receberam a homenagem dedicada a artistas que impactaram as artes ao longo de suas carreiras.
Maiolino representa um dos nomes mais influentes da arte contemporânea nacional, com uma vasta produção que abarca linguagens como pintura, gravura, escultura, desenho, assemblage, performance e vídeo. Na Bienal de Veneza, está presente nos Núcleos Contemporâneo e Italians Everywhere, com trabalhos inéditos, como a instalação Indo e Vindo, composta por argila e vegetação. Através de formas diretamente manipuladas pelas mãos, a artista apresenta um tipo de reserva sobre a ação humana sobre a matéria-prima, como um indício da evolução da nossa relação com a natureza.
Ampliando o significado de estrangeiro, Adriano Pedrosa enfatiza na curadoria que a arte é feita de deslocamentos geográficos, estéticos, sociais. E que nesse trânsito as produções se influenciam em uma constante troca, que só aumenta com a globalização. De brasileiros que buscaram formação na Europa, a estrangeiros radicados no Brasil, artistas colaboram até hoje para a construção de uma complexidade cultural baseada na intersecção, o que é encontrado de modo diluído nessa Bienal – especialmente no encontro com outras nacionalidades.
“O foco principal da Bienal Arte 2024 são, portanto, artistas que são, eles próprios, estrangeiros, imigrantes, expatriados, diaspóricos, emigrados, exilados ou refugiados – especialmente aqueles que se mudaram entre o Sul Global e o Norte Global. A migração e a descolonização são temas-chave aqui”, afirma o curador em ensaio sobre a exposição.
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