A expansão de narrativas contra-hegemônicas no universo das artes visuais é uma urgência. Vivemos um período de revisões históricas que traz impacto também às instituições artísticas e acervos museológicos no mundo todo. Convidamos Abiniel João Nascimento e Naine Terena para expor suas pesquisas e trajetórias, nos contando como atuam para criar novas perspectivas dentro de um universo que constantemente os nega.
Abiniel João Nascimento, 25, Carpina – PE, é articulador no levante Mata Norte Indígena (PE), artista visual, pesquisador, curador e bacharelando em Museologia pela Universidade Federal de Pernambuco. Membro do Coletivo de Arte Negra e Indígena – CARNI; pesquisador e curador no grupo de pesquisa Cultura e Arte Indígena no Nordeste – CAIN, curador convidado na Plataforma Práticas Desviantes; além de compor a Rede de Pesquisa e Formação em Curadoria de Exposição.
Artsoul: Para começar, poderia nos contar um pouco sobre sua trajetória? De que maneira estudos sobre cultura e artes ganharam destaque em sua vida, tanto no âmbito profissional como no pessoal?
Abiniel João Nascimento: Começo efetivamente na Arte em 2018, a partir de minha primeira ação pública no Museu do Homem do Nordeste (Recife-PE) que foi quando experienciei, junto ao coletivo, as complexidades que envolviam o ser e o fazer artístico a partir de uma perspectiva eurocentrada e como essa historiografia una era um tanto violenta ao categorizar as diversas formas criativas de expressão sensível. Desde então venho desdobrando minha poética a partir do que é chamado de performance – que é a mídia com a qual mais trabalho, principalmente pela possibilidade de explorar o corpo em terra – até, mais recente, o audiovisual. Como graduando em Museologia e anteriormente de Psicologia, recebi um vasto conteúdo teórico sobre História (da Arte), Cultura, Identidade e Memória e inevitavelmente comecei a questionar essas categorias a partir das narrativas de onde vim: um corpo-coletivo caboclo situado na Zona da Mata Norte de Pernambuco. Isso acabou me levando até o lugar de questionamento da estrutura que nos condensava em categorias de subalternidades e pobreza, buscando, a partir de então, entender essa memória e identidade latentes, embotijadas pelo medo e, sobretudo, pelo etnocídio. Começar a contrapor as narrativas oficiais a partir de uma perspectiva anticolonial tem me possibilitado diálogos com outres parentes que também estão na luta, criando assim uma rede de fortalecimento e apoio mútuos, principalmente com as pessoas indígenas artistas aqui do Nordeste.
Artsoul: Qual é o seu principal objeto de pesquisa atualmente e, de que forma essa pesquisa se relaciona com o universo das artes visuais no Brasil?
Abiniel: Costumo dizer que meu objeto de pesquisa sempre foi o eu-coletivo. Me investigo e, investigando a mim, investigo minha família, minha comunidade e também a cidade e microrregião onde estamos inseridos. A história de meu povo está conectada com todas as disputas político-territoriais que criaram os engenhos, os aldeamentos, as vilas, as cidades, as microrregiões, o estado e a nação. Tudo isso funciona como uma rede e é no desenrolar a muitas mãos dessas tramas que tenho construído “arte” e “vida” – se formos considerar esses conceitos como categorias distintas e isoladas. Nesse sentido, me importa mais que essas pesquisas se relacionem, afetem e criem diálogos concretos com meus e minhas semelhantes, com minha comunidade do que com o universo das artes visuais, mesmo entendendo este como um campo de disputa e, sobretudo, de disrupção. Dito isto, acredito que esse universo – palavra que por si só nega uma pluralidade – tem ganhado novas proporções com a presença de narrativas indígenas, que não estão dissociadas da luta pelo território, pelo bem-viver e que questiona, por essa natureza, a própria ideia de Arte.
Artsoul: Considerando demais artistas indígenas que você acompanha com proximidade, poderia citar questões que se cruzam com maior frequência em suas produções?
Abiniel: Tenho buscado e me comprometido a pesquisar, enquanto exercício de construção duma perspectiva curatorial, uma “arte indígena” que se estrutura em paralelo aos movimentos de retomadas indígenas aqui do Nordeste, principalmente partindo de uma perspectiva crítica ao capítulo histórico do século XIX onde foi declarada a nossa inexistência nesse vasto território. Assim, tenho me aproximado da produção de indígenas que estão se expressando – não necessariamente a partir da Arte, uma vez que essas pessoas muitas vezes não se reconhecem ou se auto intitulam artistas ou produtoras de Arte – como consequência do movimento de retomada de seu povo, como forma de ressignificar algumas feridas ou como metodologia para reconstruir/criar mundos possíveis de se habitar e se reconhecer diante de tudo que foi negado. A terra e o corpo como unidade inseparável; o resgate de práticas tradicionais; o trabalho com arquivos familiares e o questionamento dos estereótipos indígenas a partir do próprio corpo, são questões que se cruzam nessas produções.
Artsoul: Como você enxerga as condições vivenciadas por indígenas que são profissionais relacionados às artes visuais no Brasil?
Abiniel: O Brasil é terra indígena. Se pararmos, apenas um pouco, para refletir sobre isso e como anda a inserção de pessoas indígenas no mercado de Arte no Brasil podemos entender, então, que o mercado está negando lugares a pessoas indígenas desde que se estabeleceu. Chega a ser inacreditável pensar que em um território com a diversidade de povos – e aqui vale ressaltar a presença de mais de 300 etnias – línguas e culturas diversos que há, só a partir dos últimos cinco, seis anos, no máximo, começaram a reconhecer indígenas artistas, indígenas curadorus, depois de muita luta para sermos os contadores de nossas próprias histórias nesses espaços. Todavia, se por um lado há um circuito de arte, sudestino, que tem se “sensibilizado” a “acolher” as narrativas indígenas dentro de suas instituições, inclusive criando novas categorias para nos agrupar; por outro lado os indígenas artistas do Nordeste estão e continuam à mercê desse “mercado de arte indígena” ou desse “circuito de arte indígena” que, por muito, me faz questionar se eles estão sendo construídos politicamente alinhados com os movimentos indígenas desse território ou se neles ainda ressoam a permanência das narrativas coloniais-essencialistas projetadas sobre nossas existências.
Artsoul: De que maneira essas condições poderiam melhorar?
Abiniel: É necessário reconhecer sobre qual terra estamos, qual povo habitou e habita cada espaço que hoje é um prédio institucional e um rio sagrado soterrado. Talvez, a partir daí, se possa entender a perpetuação da violência que nega o direito de produção de autonarrativas por nós, povos indígenas e se comece a produzir efetivas metodologias para nos inserir nesse circuito, que não seja a partir do lugar da fetichização ou da folclorização. Acredito que a maior dificuldade para o mercado frente às nossas complexidades seja a não compreensão das epistemologias que estamos produzindo, falando, fazendo e, também, hackeando. Porque não apenas estamos, como também somos em movimento anticolonial e a anticolonialidade não se ata, não se precifica.
Oxidação #3. Foto de Marlon Diego.
Artsoul: Poderia nos recomendar projetos, plataformas e qualquer tipo de mídia, para que nosso público possa se aproximar mais das questões indígenas no Brasil, assim como produções indígenas nas artes visuais?
Abiniel: Temos utilizado muito a internet para escoamento de alguns projetos, principalmente agora na pandemia que os contatos se tornaram mais virtuais e o instagram tem se tornado um dos espaços de registros de retomadas de povos indígenas aqui do Nordeste como o povo Pankaxuri em Alagoas; o povo Anapuru-Muypurá no Maranhão e o Núcleo de Pesquisa/estudos dos povos Indígenas do Nordeste – ETSAMI.
Para além, ainda deixo como sugestões a exposição do projeto Um Outro Céu, vinculado a Universidade Federal da Bahia e o grupo de pesquisa CAIN – Ciência e Arte Indígena do Nordeste vinculado a Universidade Federal de Pernambuco.
Também gostaria de aproveitar o espaço para divulgar a campanha “Água é vida Tabajara” que está com o financiamento coletivo aberto para o custeamento do poço que dá acesso à água potável às diversas famílias na Aldeia Barra de Gramame, na Paraíba
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Entrevista concedida por Abiniel João Nascimento por e-mail entre Abril e Maio de 2021.
Todas as imagens foram cedidas pelo artista.
Confira aqui a entrevista de Naine Terena
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Diogo Barros é curador, arte educador e crítico, formado em História da Arte, Crítica e Curadoria pela PUC SP.