Para quem mora em São Paulo e acompanha a cena artística da metrópole, não é novidade que a Vila Modernista, no bairro dos Jardins, tem se consolidado como um reduto das artes visuais. Nos últimos anos, ela tem abrigado uma série de galerias que agitam o circuito da cidade e transformam a região em um não-tão-pequeno pólo cultural. No último dia 10, a vila recebeu mais um espaço expositivo, desta vez com um diferencial: é o primeiro de todo o país destinado a unir arte e sustentabilidade.
A Casa Seva abre as portas com a missão de conectar seus visitantes à questões de preservação ambiental. Esse desafio, no entanto, é rapidamente superado com a mostra “Frans Krajcberg: A morada humana”, que remonta o trabalho de um dos pioneiros da arte em defesa do ecossistema. Com obras datadas de 1960 até 2000, a exposição abrange as diferentes técnicas utilizadas por Krajcberg, artista polonês naturalizado brasileiro. São produções que encantam o público pela beleza, mas também alertam sobre a destruição dos biomas brasileiros.
Essa mobilização do espaço cultural em torno de temáticas ecológicas se deu não apenas pela urgência do debate sobre mudanças climáticas, mas também por uma vontade pessoal de sua fundadora. Vinda de uma família ligada à sustentabilidade, Carolina Pileggi teve a arte e a natureza como inspiração desde muito cedo. Neta do criador da Ambiterra – empresa que desenvolvia soluções para marcas minimizarem seus impactos – e filha de colecionadores, Carolina tinha a Casa Seva como um desejo antigo, mas que só começou a tomar forma a partir de 2023.
Mais do que utilizar a arte como suporte para tratar de assuntos importantes, o projeto tem como propósito, ainda, buscar ações materiais que inovem de fato o campo da produção cultural. Existe um comprometimento pessoal com o funcionamento sustentável. Uma das iniciativas já implantadas, por exemplo, é reverter uma porcentagem das vendas para programas de reflorestamento. Outra, é substituir o uso do plástico bolha por papelão e fitas de papel no embrulho e transporte das obras, e trocar o adesivo vinílico do texto curatorial (que em poucas semanas se tornaria resíduo) por papel semente.
A exposição foi organizada em colaboração com a Galeria de Arte Marcia Barrozo do Amaral e em parceria com o Espace Krajcberg, AMAFRANS – Associação Amigos de Frans Krajcberg e N+1 Arte Cultura. Nela, materiais como pigmentos puros e troncos de árvore retirados de queimadas apontam para a urgência de se proteger o planeta, e contribuem para a valorização da natureza.
Em conversa com a Artsoul, a fundadora Carolina Pileggi e a produtora e marchand Viviane Aguiar Galdeano contaram detalhes sobre a concepção do projeto e o processo de montagem da mostra.
ARTSOUL O que te inspirou a criar a Casa Seva? Qual visão você tem para esse espaço, considerando que é um espaço para exposições, mas também eventos e palestras?
CAROLINA PILEGGI A ideia da Casa Seva veio muito de uma vontade pessoal de comunicar a sustentabilidade. Em 2017, quando eu fui para a África pela primeira vez, comecei a realmente me ver de forma mais profissional como fotógrafa. Até então, eu gostava de fotografar, mas de forma amadora, e na África eu percebi que poderia juntar as minhas duas paixões. Eu sou fotógrafa fine art e hoje meu foco maior é em vida selvagem. Então a Casa Seva nasceu disso, eu tento trazer essa comunicação da necessidade da preservação [da natureza] através da beleza do animal. Eu acredito que a arte tem esse poder de transformar, de comunicar, de simplificar alguns diálogos, de trazer de forma mais inclusiva e simples. E na minha vida eu vejo a arte nesse papel do diálogo com a sustentabilidade e o meio ambiente, assim nasceu a Casa Seva.
ARTSOUL Como foi o processo de pesquisa para essa primeira mostra e por que escolher a obra do Frans Krajcberg para a inauguração?
CAROLINA PILEGGI Eu conheci a Viviane há alguns anos e a Marcia Barrozo também. Já tinha uma conversa para possivelmente fazer algum projeto, mas ainda não tinha nada muito estruturado. Quando eu comecei a de fato criar a Casa Seva, quando já tinha o espaço e a ideia pronta, entendi que não tinha ninguém melhor do que o pioneiro. Krajcberg é um pioneiro como artista ambientalista na defesa do meio ambiente. Ele traz de uma forma tão clara na obra dele a necessidade da preservação, a necessidade da não-destruição. E nessa primeira exposição a gente escolheu não fazer um tema específico. Para inaugurar, a gente quis trazer um conceito total do artista como ambientalista.Tem obras dos anos 60 aos anos 2000, com diversas técnicas, como pinturas, gravuras e esculturas. E muitas pessoas chegaram e falaram “Nossa, eu não sabia que ele fazia outras coisas além das esculturas”. Então a gente fez essa parceria com a Galeria Marcia Barrozo do Amaral, a Viviane trabalhou 20 anos com a Márcia e hoje ela está comigo na Casa Seva também, então tudo foi pensado junto.
VIVIANE AGUIAR GALDEANO O Krajcberg não é só um artista visual. Nós não o escolhemos apenas por ser um artista plástico, mas mais por ele ser um ambientalista. Essa foi a grande questão da Carolina, de observar artistas que tinham esse viés mais ativo. E o Krajcberg vem desde os anos 60 trazendo à público toda a questão do desmatamento, das queimadas. No momento em que ele cria esculturas com restos de queimadas da Amazônia, do Mato Grosso ou de qualquer outro lugar e transforma e dá vida a elas através da arte, ele está levantando uma bandeira. Quando ele faz gravuras de flores ou de areia sem retirá-las da natureza, tirando apenas o olhar dele e aquele molde, e traz para a gente observar o quão importante a natureza é, esse é o foco da Casa Seva. Não só mostrar o lado comercial da arte, mas sim o que ele representa enquanto ecologia. Uma parte que foi importante para mim, que trabalhei durante 20 anos em uma galeria de arte, foi conseguir trazer obras de um artista renomado sem utilizar plástico bolha. Sei que é uma ação pequena e isolada, mas já começamos dessa forma. Trabalhamos todo o transporte das obras só com papelão e fitas de papel. Pedimos o maior cuidado na hora de desembalar, porque vamos reaproveitar todo esse material. E temos uma ideia de exposição um pouco mais longa que o habitual, que são dois meses, para também evitar o vai e vem do caminhão, do transporte. São pequenas ações que a gente tá tentando trazer para o mercado. Mas primeiro a gente faz, vê como acontece, e planta essa sementinha.
ARTSOUL Como vocês veem a intersecção entre arte, design e sustentabilidade?
CAROLINA Aqui é uma casa expositiva, mas a gente quer trazer as artes não só como artes visuais. A gente quer trazer outras linguagens artísticas também. O design pode ser o design de moda, o design de móveis, mas estimular e trazer esses diálogos em diversas áreas, porque o principal é poder mostrar isso aos visitantes com ações possíveis no dia a dia de cada um. Claro que é maravilhoso a gente poder enxergar uma técnica com pigmentos naturais, mas como essa pessoa pode aplicar isso na vida dela? Com outras linguagens, a gente pode aproximar o público um pouco mais das escolhas que ele pode fazer no dia a dia. Uma ação pode ser pequena no individual, mas no coletivo começa a fazer mudança, então a gente quer acessar isso. A próxima exposição vai ser fotográfica, do Christian Cravo. Vai inaugurar dia 19 de outubro. É fine art, são fotografias, mas vai falar diretamente dos lixões de moda e de lixo eletrônico, então já vai ser uma abordagem de outras questões, e para o ano que vem queremos trazer uma exposição mais voltada para o design.
ARTSOUL Como foi pensada a expografia? Quais relações foram feitas entre as obras?
VIVIANE AGUIAR GALDEANO A gente escolheu obras de todas as épocas dele. Como ele sempre foi um ambientalista, trouxemos obras dos anos 60, 70, 80, 90 e 2000. Tem pelo menos uma de cada fase, e dentro dessa linguagem de época nós trazemos tudo que ele fez. Uma época foi gravura; outra foi pintura sobre papel com pigmento natural de quando ele conheceu essa técnica e explorou isso; esculturas de quando ele começou a usar os restos de queimada; uma escultura de chão que participou de uma exposição no MAM-RJ e no MUBE com pedras de hematita acrescentadas na madeira; pedras que dão colorações; e obras inéditas. É um mix de Krajcberg com obras inéditas e todo o princípio do trabalho dele.
CAROLINA PILEGGI A gente pensou muito nos pigmentos. Tem uma parede vermelha que é um dos tons que ele usava. Tem uma frase dele sobre os pigmentos também, sobre trazer vida a algo que já foi destruído pelo homem.
ARTSOUL Qual a importância de abrir um espaço em São Paulo e montar uma exposição como essa, tratando de sustentabilidade, em um momento em que esse tema tem sido central não só nas pautas políticas, mas também culturais?
CAROLINA PILEGGI A arte já é vista como uma ferramenta política de grito, isso é muito comum, mas poucas vezes a gente vê esse foco de criar outras dinâmicas, de aproximar o visitante para além de expor as obras. Começar a estimular e trazer essa troca unindo forças. Eu não sou uma galeria, mas quero poder dialogar entre as galerias e aprender junto como criar um ambiente mais sustentável, não só no artista que está sendo exposto, mas nessa rede que está por trás.
VIVIANE AGUIAR GALDEANO Às vezes as pessoas têm vontade, mas não têm o meio. Quando a gente estava orçando transportadoras, elas ficaram muito surpresas quando eu disse que não queria usar plástico bolha e ficaram tentando achar uma alternativa. Então às vezes as pessoas querem mudar, mas não sabem como. Estamos tentando viabilizar esse acesso, facilitar esse entendimento, mostrar que é possível.
CAROLINA PILEGGI Pode ser um primeiro passo, mas a vontade é mostrar que essa mudança é possível.
Serviço
Frans Krajcberg: A morada humana
Al. Lorena, 1257 – Casa 1
Entrada gratuita
Período de visitação: 10 de agosto a 05 de outubro de 2024
Terça a Sexta, das 11h às 18h
Sábado, das 11h às 15h
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