Por Adriana Rede
A história da arte é uma ferramenta poderosa para nos ajudar a pensar sobre nosso tempo, inclusive em momentos de pandemias. E a cultura pode ser uma inspiração nesse processo.
A arte nos fala do passado, do presente e nos ajuda a pensar o futuro.
Vamos abordar neste texto como a arte viu, passou e interpretou os momentos difíceis da história da humanidade. Mais importante, ela nos mostra que as catástrofes ajudaram as civilizações a sair das crises melhores. As guerras, as revoluções e catástrofes, como os vírus, são poderosos elementos de mudanças históricas.
O teórico Theodor Adorno proclamou, em 1949 (e depois retirou), a célebre citação Será possível a poesia depois de Auschwitz? O tempo mostrou que sim.
Vamos falar de algumas das mudanças nas artes na história da humanidade decorrentes das questões epidêmicas. Especialmente da Peste Negra e da Gripe Espanhola, que influenciaram o surgimento do Renascimento nas Artes e algumas Vanguardas Artísticas Europeias.
A origem etimológica da palavra Pandemia vem do grego:
Pan = todos. Demos = povo. Há relatos que no ano 430 antes de Cristo, em Atenas na Grécia, houve uma doença que atingiu 35% da população. A Peste Ateniense. Pode ter sido febre tifoide, cólera ou até peste bubônica, não se sabe. Péricles morreu dessa doença. Atenas perdeu a primazia para Esparta.
Outras pestes na antiguidade:
PESTE NEGRA
A peste Negra, ou peste bubônica, surgiu em torno de 1341 e tem a estimativa de 75 a 200 milhões de mortes na Eurasia, Europa e Ásia (lembrando que no século XIV não existiam estatísticas tão avançadas).
Dizem que teve origem na Ásia e chegou à Europa, pela Itália, através da rota da seda. De lá, a bactéria provavelmente transportada por pulgas dos ratos que viajavam em navios mercantes genoveses, espalhou-se pelo mediterrâneo, atingindo o restante da Europa.
Não temos muitos registros feitos na época, durante o período não existia muito bem estabelecido o conceito de autoria, esta provavelmente foi uma gravura retratando os doentes com os “bulbões” que apareciam na pele, feridas escuras, por isso peste bubônica ou Peste Negra.
Teve seu apogeu entre 1347 a 1351. Em torno de um terço da população foi dizimada, considerando-se somente a Europa.
O homem medieval tinha um pensamento mágico, tudo que se passava tentava entender à luz da religião. Tinham receio da ira divina e de não serem salvos após a morte. A arte medieval é muito relacionada com esta ideia da morte e do macabro. (A separação entre religião e ciência só virá ocorrer após o Renascimento).
O humor era pesado na época, como não havia conhecimento científico a praga era frequentemente vista através de lentes macabras e sombrias. O tema da dança da morte é um exemplo disso.
O afresco acima retrata a morte triunfante, personificada como um esqueleto vivo com um manto e uma coroa. Aos pés dele estão os corpos de um papa e um imperador. “A morte” está em pé em uma enorme sepultura em torno do qual figuras de um cardeal, um bispo, um rei e um filósofo estão oferecendo seus presentes. Mas ela é implacável com todos, igualmente.
RENASCIMENTO
Os pensadores e artistas que sobreviveram na Europa promoveram o Humanismo e o Renascimento.
Se inicia o movimento humanístico, que vai levar aos escritos do poeta Petrarca (1304-1374), e de Giovanni Boccaccio (1313-1375).
Boccaccio em seu livro Decameron (1348-1353), escrito no período da Peste Negra, descreveu os sintomas e a “etiqueta” da doença.
A obra é considerada um marco literário na ruptura entre a moral medieval, em que se valorizava o amor espiritual, e o início do realismo, iniciando o registro dos valores terrenos, que veio redundar no humanismo na literatura; nele não mais somente o divino, mas a natureza ditará a conduta do homem.
A epidemia leva à percepção de ser a sociedade incapaz de avançar com a desigualdade social. A crise escancara essa desigualdade. As epidemias despertam o sentido da palavra sociedade.
Alguns atribuem como a principal e mais importante analogia ao período da Peste Negra, a pintura do mestre renascentista flamenco Pieter Bruegel, o Velho, a obra “O Triunfo da Morte”, retratada posteriormente, em 1562.
A praga criou uma série de convulsões religiosas, sociais e econômicas. As artes reagiram com muita intensidade. No século seguinte o Humanismo se desenvolve e se consolida. Ainda no século XIV, foi possível observar mudanças nos padrões estéticos que vieram a reboque do novo modo de pensar. Nas obras de Donatello, a presença dos “putti” (meninos), figuras angelicais em movimento, surgia como elemento de quebra do rigor, imprimindo ritmo e sensualidade às esculturas.
Depois esses anjos, que se tornaram cupidos, consolidaram-se com as pinturas de Rafael Sanzio.
A peça-de-altar Madona Sistina foi encomendada a Rafael em 1512 pelo Papa Júlio II para a igreja de São Sisto, em Placência. Hoje está na Pinacoteca dos Mestres Antigos em Dresden, Alemanha.
Na esteira da exaltação da sensualidade e dos prazeres mundanos, passaram a frequentar a produção artística figuras ligadas ao paganismo e a seres mitológicos, como Baco, que deixou de ser demonizado para tornar-se ícone da boa vida.
A conjunção do paganismo a seres mitológicos atinge o ápice na
obra de Botticelli, que, mais de um século depois da pandemia, pinta o primeiro grande nu frontal em O Nascimento de Vênus.
Já Leonardo Da Vinci foi o próprio homem do Renascimento. Podemos aprender muito com ele. Tinha um amor profundo pelo conhecimento. Atuou como pintor, escultor, arquiteto, engenheiro, matemático, botânico, geólogo, cartógrafo, físico, mecânico, inventor, anatomista, escritor, poeta e músico.
O desenho O Homem Vitruviano de Da Vinci está intimamente relacionado com a filosofia humanista e o conceito de antropocentrismo. Temos a tomada do pensamento racional. Nele, o homem torna-se o centro do mundo, em contraposição ao teocentrismo, na qual Deus está no centro do mundo. Houve também o apogeu de Michelangelo, da beleza, da perfeição. Contemporâneos deles eram Machiavel, William Shakespeare… Estes artistas deixaram para trás definitivamente a idade média.
A praga retornou várias vezes como surtos até o início do século XX. E todas essas ocasiões são exemplos de saltos na civilização.
A GRIPE ESPANHOLA
Outro grande momento de mudança foi após a Gripe Espanhola, que ocorreu entre 1918 e 1920, em três ondas. Aparentemente, a primeira ocorreu entre março e abril de 1918 ainda durante a Primeira Guerra Mundial. Sua origem é até hoje não oficializada, mas teria surgido na Ásia OU em campos militares no interior dos Estados Unidos, cujos soldados levaram o vírus para as trincheiras da Europa e de lá se espalhou.
O nome Gripe Espanhola é atribuído ao fato de que a Espanha, neutra durante a Primeira Guerra, mais democrática no período portanto com imprensa livre, ter reconhecido a gripe e permitido a divulgação de informações epidemiológicas sobre a doença. Após a guerra, e durante a epidemia da gripe, que dizimou em torno de 100 milhões de pessoas, o mundo se transformou, a arte se revolucionou.
Infelizmente faleceram alguns artistas.
Como Gustav Klimt (1862/1918), que foi um pintor simbolista austríaco, um dos fundadores do movimento da Secessão de Viena, que recusava a tradição acadêmica nas artes. Ficou conhecido pelos seus belíssimos retratos sensuais da elite de Viena. Intelectualmente relacionado com o romanticismo, Klimt teve sua etapa dourada ao final de sua carreira.
Mas também sondava com a morte, como na obra A Vida e a Morte. Ele não resistiu à gripe.
O austríaco Egon Schiele (1890/1918), assim como seu mentor Gustav Klimt, teve a carreira abruptamente encerrada ao ser levado pelo auge da gripe espanhola.
Schiele produziu uma obra maravilhosa tendo como modelo uma amante anterior ao seu casamento, intitulada “O Homem e a Donzela”. A amante morreu vitimada pela gripe espanhola. Quando recebeu a notícia, em meio a uma mostra onde a pintura estava exposta, mudou o título da obra para “A Morte e a Donzela”.
(Não deixem de assistir ao belíssimo filme Egon Schiele: A Morte e a Donzela).
Schiele faleceu 8 meses após Klimt e três dias após sua esposa, grávida de seis meses. Um pouco antes o artista produziu a belíssima obra “A Família” (1918).
Schiele faz um retrato cru e direto do período.
Já Edvard Munch (1863/1944), autor da famosa obra “O Grito”, sobreviveu à Gripe Espanhola. Convalescente da gripe, decide registrar aquele momento pintando o autorretrato “Depois da Gripe Espanhola” em 1919.
AS VANGUARDAS ARTÍSTICAS
Os anos 20, logo após a epidemia da Gripe Espanhola, foram anos de intensa atividade das Vanguardas Artísticas. Surrealismo, Dadaísmo, este ainda com raízes durante a guerra, foram movimentos disruptivos de criação no século passado.
Artistas faleceram, mas sobreviveram Matisse, Picasso, Edward Hopper, entre outros, e produziram obras extraordinárias. Viver o momento é absolutamente fundamental para um artista. É o que provoca sua combustão.
Henri Matisse passava a maior parte do inverno em Nice, na costa do Mediterrâneo. Ele costumava ficar no mesmo hotel, um edifício em estilo rococó. A obra “O interior de Nice” é talvez a mais ambiciosa de uma série de imagens que o pintor criou usando o hotel como pano de fundo, tudo feito no estilo realista ao qual ele retornara nessa época. A varanda era um dos temas favoritos do artista, permitindo que ele vinculasse o espaço interno e externo. Como muito se explorou nas artes nesses nossos tempos recentes de isolamento.
Outro importante relato do período é a belíssima pintura com colagem que Picasso produziu, Three Musicians, onde apresenta um arlequim, um pierrot e um monge, representando o próprio Picasso, Guillaume Apollinaire, e Max Jacob, respectivamente. Apollinaire e Jacob, ambos poetas, foram amigos íntimos de Picasso. Apollinaire morreu com a Gripe Espanhola em 1918, enquanto Jacob decidiu entrar para um mosteiro em 1921.
Quanto a Edward Hopper, pintor americano de NY, que possui um trabalho extremamente melancólico, é impossível observar sua
obra e não sentir que a época, para o artista, era difícil e havia pouca esperança. Também análogo aos temas que vimos retratados nas redes sociais em nosso tempo.
Quanto a arte que está se fazendo hoje, durante a pandemia do Covid-19, passados cem anos após a grande Gripe Espanhola, provavelmente não irão ocorrer grandes mudanças pictóricas, ou nos formatos, etc., em relação ao que se vinha fazendo nos anos recentes, exceto que passarão a ser mais “virtuais”. E os materiais de arte serão cada vez mais recicláveis (o que já era uma tendência). Além do papel social da arte, e de raça, gênero, outra tendência recente, que estarão cada vez mais presentes.
Iremos ver que serão mudanças diferentes das que falamos anteriormente (renascimento e vanguardas artísticas europeias), mas muito potentes e engajadas!
Serão poéticas urgentes dos nossos tempos: informar e conscientizar. Alguns artistas entram também com a questão premente de se arrecadar fundos para as causas emergenciais da pandemia. É o engajamento social através da arte. Nesse momento o coletivo ganha mais força, e o social importa mais do que nunca.
Vemos que a partir daqui a cultura da filantropia, do beneficente, do altruísmo, da empatia para com o outro, o “ser social”, teve um ponto de virada no Brasil.
Surgiram vários coletivos e ações de galerias e artistas com objetivo de apoiar a classe, e também ações beneficentes voltadas a populações vulneráveis e instituições.
Como falamos no início, a arte é uma ferramenta potente para nos ajudar a pensar sobre o nosso tempo. E as artes visuais um potencial registro de fragmentos da realidade, portanto possui em sua essência a capacidade de ignorar as limitações impostas ao homem e transmitir algum sentido ao caos.
Cabe aos artistas pensar criticamente e emocionalmente, transformar em objeto, pintura, escultura, instalação, vídeo, poeticamente, algo que toque as pessoas. Este é o papel da arte contemporânea, denunciar, nos ajudar a entender o mundo, dar voz às nossas emoções.
Mas como se junta tudo isso? Como se constrói a narrativa de um trauma?
A iniciativa da Exposição Arte da Quarentena da plataforma ArtSoul organiza essa narrativa, e inova ao mostrar o que está se produzindo na arte brasileira agora, durante a pandemia do Covid-19, mostrando trabalhos de 600 artistas produzidos no auge do período de isolamento. Mais do que inédita, iniciativa importantíssima e necessária.
Nas palavras de Ernst Fischer – “A arte é necessária para que o homem se torne capaz de conhecer e mudar o mundo. Mas a arte também é necessária em virtude da magia que lhe é inerente”.
Adriana Rede é curadora independente no Brasil e exterior, tem formação em Comunicação Social, História da Arte, Curadoria e Expografia e Crítica de Arte. Realizou co curadoria no MAM SP, e curadoria em museus como MAJ, SESC, Caixa Cultural SP, MAC USP e Bienal de Curitiba, além de galerias e instituições. Ocupa há 14 anos a posição de curadora da exposição Chapel Art Show. Realizou curadorias de vários artistas, entre eles Nelson Leirner e German Lorca. Escreve textos críticos sobre obras/artistas/exposições/movimentos. Curadoria para criação ou expansão de coleções particulares ou institucionais. Palestrante no Brasil e exterior.
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5 Comments
Gostei muito do artigo pois ele é bastante informativo.
Olá, estava preparando aula para meus alunos de ensino fundamental e médio e gostei muito de deparar com sua publicação. Possivelmente vou comentar o tema. Obrigada por compartilhar.
A livro muito bom lendo ele aprendi muita coisa olha que demorei umas 1 hora pra lê mais e muito bom e recomendo pra todo mundo
A quase eu ia me esquecendo meu nome e Vinícius Augusto Furlan
É muito interessante essa história, aqui da para entender muitas coisas. Mas quando eu vou responder as questões me perco totalmente nas respostas.
estou preparradno uma conferencia sobre asgrandeeidemias que assoaram a huanidadee gostaria muito de ilustra-lo com pinturas de época que registrearam essas catastrofes
seu artigo é valioso ! poderia me passar algumas outra fontes principalemtne de registros de artistas plasticos?