
Sustentabilidade, ética e crítica social têm atravessado o design contemporâneo de modo cada vez mais direto. Nos últimos anos, a escolha dos materiais deixou de ser apenas uma questão técnica ou estética e passou a integrar uma agenda mais ampla, repensando a forma como produzimos, consumimos e nos relacionamos com o ambiente e, paralelamente, transbordando também para as peças produzidas por designers ao redor do mundo. O que antes era pura e simplesmente como resíduo, subproduto ou descartável vem sendo reinserido em processos criativos que testam os limites entre arte, ciência e tecnologia.
O uso de materiais inusitados tornou-se um dos campos mais férteis dessa transformação. Designers e estúdios de diferentes partes do mundo têm olhado para florestas, oceanos, fábricas e até cozinhas em busca de novas matérias-primas, não apenas como alternativas sustentáveis, mas como ferramentas de reflexão. A materialidade passa a carregar um discurso crítico sobre consumo, descarte e o futuro possível da produção, além de ser mais um campo onde a criatividade é levada a novos patamares.
Em um contexto de mudanças climáticas e esgotamento de recursos, o design assume um papel experimental. A pesquisa de materiais tornou-se parte essencial do processo criativo, muitas vezes aproximando o designer de práticas antes restritas à biotecnologia e à engenharia de materiais.

O estúdio britânico Material Cultures, por exemplo, tem explorado recursos florestais subutilizados para desenvolver novos compósitos naturais. Em um de seus projetos, cascas de árvore, agulhas de pinheiro e colas de lignina natural foram transformadas em chapas e superfícies resistentes, pensadas como substitutas do compensado e do OSB. O objetivo não é apenas reduzir o impacto ambiental, mas também propor um modelo de produção que fortaleça ecossistemas mais diversos e resilientes.


FIlamentos criados pelo coletivo Nawa. Reprodução: Casa Cor
Outros nomes seguem caminhos semelhantes, combinando experimentação técnica e responsabilidade ambiental. O estúdio japonês We+ desenvolveu o material Remains, formado por detritos urbanos moídos e vidro derretido, utilizado na criação de luminárias e mobiliários. Já o coletivo omanense Nawa criou um filamento para impressão 3D feito a partir de caroços de tâmaras, argila e fibras vegetais, uma alternativa ao plástico convencional que une tradição artesanal e tecnologia contemporânea.

Essa convergência entre ciência e criação abriu espaço para o surgimento de biomateriais como o micélio, a estrutura subterrânea dos cogumelos (quase como suas “raízes”). O fungo tem sido usado como base para a fabricação de móveis, luminárias e embalagens biodegradáveis. No estúdio bioMATTERS, micélio e argila são combinados em objetos impressos em 3D, enquanto marcas como Hermès e Adidas já testam o “couro de micélio” em suas linhas de moda e acessórios.
Esses exemplos revelam um campo em plena expansão, em que a inovação material é guiada tanto pela pesquisa técnica quanto por um pensamento ético. A circularidade, transformar resíduos em novos ciclos produtivos, é um princípio recorrente, ainda que nem sempre apresentado como conceito. A ideia aqui é produzir sem gerar desperdício e criar objetos que possam retornar ao ambiente de forma segura.
Entre as múltiplas direções dessa busca, o reaproveitamento do plástico, como o recolhido dos oceanos, tornou-se uma das iniciativas mais consistentes. Estima-se que mais de 11 milhões de toneladas de plástico sejam despejadas anualmente nos mares, e parte desse material começa a ser recuperada por meio do design.




O banco Coast, da marca norueguesa Vestre, é o primeiro banco de praça feito integralmente de plástico marinho reciclado. Já a marca Humanscale criou a cadeira Path, que incorpora dez quilos de plástico reaproveitado, metade proveniente de redes de pesca. Outras empresas, como a dinamarquesa Wehlers e a britânica Mater, transformam esse mesmo resíduo em coleções completas de mesas, bancos e cadeiras para áreas internas e externas.
Mais do que um gesto ecológico, essas iniciativas propõem uma inversão de valores. O que antes era lixo passa a ser matéria-prima. O material ganha novos contornos estéticos e simbólicos, e o design assume um papel de mediação entre economia circular e cultura visual. As superfícies feitas de fragmentos plásticos lembram pedras preciosas ou mármores coloridos, como na série Ocean Terrazzo, do designer Brodie Neill, em que micropartículas de plástico substituem o mármore em tampos de mesa e assentos, transformando o resíduo em algo durável e belo.

O mesmo raciocínio se aplica a outros materiais descartados: tecidos, calçados, resíduos de construção ou madeira reaproveitada. Experimentos mais radicais acontecem quando os designers voltam o olhar para os restos de comida.
Entre os materiais mais inesperados utilizados atualmente no design, os derivados de alimentos se destacam pela criatividade e pela potência simbólica. Cascas de batata, borra de café, conchas de moluscos ou leite vencido, todos já foram transformados em objetos e biomateriais por artistas e pesquisadores que veem no descarte alimentar uma oportunidade de reflexão sobre consumo e desperdício.

O designer alemão Basse Stittgen é um dos nomes mais expressivos desse movimento. Em seu projeto How do you like your eggs?, ele criou porta-ovos e pratos feitos com cascas de ovos podres, usando a albumina como agente natural de polimerização. O resultado é um material duro e translúcido, semelhante à porcelana. Mais do que uma solução prática, o trabalho funciona como crítica ao desperdício e à distância entre produção e consumo. Stittgen já havia desenvolvido objetos a partir de sangue animal recolhido em matadouros — trazendo uma provocação ao ciclo industrial da carne.

Outros designers exploram caminhos mais aplicáveis. A startup londrina Chip(s) Board transformou cascas de batata em um bioplástico batizado de Parblex, utilizado pela marca Cubitt’s Eyewear na fabricação de armações de óculos. O material é produzido em parceria com a McCain Foods, que fornece os resíduos de batata, exemplo de como a pesquisa de materiais pode evoluir para modelos de produção em escala industrial.

No mesmo espírito, a empresa Shellworks desenvolveu um bioplástico a partir da quitina, substância presente em conchas de crustáceos. O resultado é um material leve, translúcido e reciclável, que pode substituir embalagens plásticas convencionais. O projeto nasceu dentro do Royal College of Art, em Londres, e se tornou uma referência em design circular aplicado à indústria de embalagens.

Já o designer Julian Lechner criou a marca Kaffeeform, que foca na reutilização de grãos de café. Dentre seus produtos estão suas xícaras feitas com borras de café recolhidas de cafeterias de Berlim. O processo inclui secagem, prensagem e modelagem do material, que resulta em um composto leve, resistente e biodegradável. O produto acaba criando uma espécie de sisteme, onde o mesmo café que gera o resíduo passa a servir bebidas em objetos feitos com o próprio material descartado.

Por fim, a designer Tessa Silva resgatou uma técnica antiga de produção de plástico a partir da caseína do leite, usada no início do século XX antes do advento dos polímeros sintéticos. Reinterpretando esse processo, Silva cria vasos e esculturas de aparência orgânica e textura leitosa, feitos com leite excedente de produção orgânica. O trabalho propõe uma reflexão sobre o desperdício e o valor simbólico dos alimentos.
Esses exemplos mostram como o design pode se apropriar daquilo que é “perecível” para propor novos ciclos de existência. Ao transformar restos em objetos, esses projetos ampliam o entendimento sobre o que pode ser considerado matéria e sobre o papel do designer como mediador entre natureza, indústria e cotidiano.
Grande parte dessas experiências nasce em universidades, estúdios experimentais ou exposições de arte e design, funcionando inicialmente como provocação. Mas muitas delas já começam a migrar para o campo da produção comercial, movimento que indica a expansão da chamada “economia dos biomateriais”.
O que une esses projetos é menos uma estética comum e mais uma atitude crítica. Usar o que seria descartado significa também questionar o modelo linear de produção e consumo. Em alguns casos, o design assume abertamente o papel de denúncia, em outros, busca soluções concretas para reduzir impacto ambiental.
Esses objetos funcionam como lembretes de que cada material carrega uma história, de onde veio, como foi transformado e para onde pode retornar.
O uso de materiais inusitados no design contemporâneo não é apenas uma tendência passageira, mas um reflexo de um tempo em que as fronteiras entre natureza, tecnologia e cultura estão em permanente negociação. O design deixa de representar o novo apenas pela forma e passa a fazê-lo pela origem e pelo destino das coisas.
Hoje, peças de mobiliário, por exemplo, podem nascer de conchas, folhas, micélios ou cascas de batata. A cadeira pode conter redes de pesca, e a xícara pode vir do café que sobrou na manhã anterior. Os resíduos tornam-se o ponto de partida.
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