A Bienal de São Paulo é, desde 1951, um dos grandes encontros da arte contemporânea mundial no Brasil. Realizada a cada dois anos no Pavilhão do Parque Ibirapuera, consolidou-se como a segunda bienal mais antiga, sendo antecedida apenas pela Bienal de Veneza. E se firmou como um palco de experimentação, questionamento e visibilidade para artistas de diferentes gerações, linguagens e geografias.
Em 2025, esse encontro ganha uma nova iteração. De 6 de setembro de 2025 a 11 de janeiro de 2026, o Pavilhão da Bienal no Parque Ibirapuera abrirá suas portas para a 36ª Bienal de São Paulo. Com entrada gratuita, a mostra reúne 125 artistas de diferentes gerações e países sob o tema “Nem todo viandante anda estradas — Da humanidade como prática”. Inspirada no poema Da calma e do silêncio, de Conceição Evaristo, a temática propõe uma reflexão sobre a humanidade não como conceito abstrato, mas como prática cotidiana — vivida em encontros, em travessias, em silêncios, em palavras.
Em seu poema, Conceição Evaristo escreve: “Nem todo viandante anda estradas, há mundos submersos que só o silêncio da poesia penetra”. A escolha desse verso como mote para a Bienal traz à tona a potência da imaginação, da memória e da escuta como práticas capazes de inventar outros universos ou de reimaginar nosso próprio mundo.
A identidade visual escolhida é a do estuário, ponto em que o rio encontra o mar, lugar de encontro e transformação. Assim se imagina a Bienal, como espaço onde culturas se cruzam e identidades se misturam.
À frente dessa edição está Bonaventure Soh Bejeng Ndikung, curador nascido em Camarões e radicado na Alemanha, diretor do Haus der Kulturen der Welt, em Berlim. Ndikung tem uma trajetória singular: cientista de formação, doutor em biotecnologia médica e biofísica, tornou-se uma das vozes mais inovadoras da curadoria internacional, fundador do espaço SAVVY Contemporary e responsável por projetos em bienais e museus pelo mundo. Sua marca é pensar a arte como prática que atravessa ciência, política, espiritualidade e vida cotidiana.
Ao lado dele, compõem a equipe curatorial Alya Sebti (Marrocos), Anna Roberta Goetz (Suíça), Thiago de Paula Souza (Brasil), Keyna Eleison (Brasil) e a consultora de comunicação Henriette Gallus (Alemanha). O grupo reúne experiências diversas, de bienais africanas à pesquisa curatorial latino-americana, de museus europeus a coletivos brasileiros.
A metáfora das aves migratórias norteia o método da equipe: como pássaros que atravessam oceanos sem preocuparem-se com mapas, a Bienal busca ser uma travessia em que nacionalidades deixam de ser barreiras. “Mapas são ferramentas desumanizantes, os rios já cruzavam regiões antes de sua criação”, afirmou Ndikung em entrevista. A proposta é fazer da mostra um sismógrafo dos tremores sociopolíticos do nosso tempo — registrando as pressões, mas também apontando possibilidades de futuro.
A lista de 125 artistas selecionados traz vozes de todos os continentes, de diferentes gerações e práticas artísticas. Do Brasil, a presença é robusta. Entre os selecionados estão Heitor dos Prazeres, Maria Auxiliadora, Alberto Pitta, Lidia Lisbôa, Moisés Patrício, Nádia Taquary, Rebeca Carapiá, Sallisa Rosa, Antonio Társis, Manauara Clandestina, Maxwell Alexandre, Gê Viana, Sérgio Soarez, Aislan Pankararu, entre outros. A diversidade de origens e linguagens revela um panorama vivo da produção brasileira.
Entre os brasileiros, é possível destacar dois nomes históricos. Heitor dos Prazeres (1898–1966), pintor autodidata e sambista, registrou em telas o cotidiano das favelas, o carnaval, as festas populares e a boemia carioca. Sua obra, marcada por cores vivas e cenas de dança e música, inscreve na história da arte brasileira uma perspectiva que, por décadas, foi considerada periférica. Um olhar popular que sempre fez parte do país, mas foi relegado a espaços marginais.
Maria Auxiliadora (1935–1974), pintora autodidata radicada em São Paulo, também emerge como referência fundamental. Suas cores intensas narram o cotidiano das comunidades negras, festas religiosas e a vida das mulheres. Ao trazer Maria de volta ao centro da cena, a Bienal reforça a importância da arte popular e do olhar feminino na construção da cultura brasileira.
A inclusão de Heitor e Maria nesta Bienal costura um elo com a história, lembrando que a cultura popular sempre foi um dos pilares da imaginação artística brasileira.
Se Heitor e Maria abrem portas para a memória, dois artistas contemporâneos revelam como essa herança é reinventada hoje.
Maxwell Alexandre (1990) cresceu na Rocinha, no Rio de Janeiro, e transformou sua vivência em matéria pictórica. Reconhecido pelas grandes lonas de papel pardo, suas obras retratam corpos negros em cenas de cotidiano, espiritualidade e resistência, trazendo a favela para dentro dos espaços institucionais de arte. Maxwell é, hoje, uma potente voz no cenário da arte brasileira contemporânea, tensionando os limites entre centro e periferia, visível e invisível, sacralidade e vida comum.
Gê Viana (1986), maranhense, atua sobretudo com colagem, fotografia e performance. Seu trabalho revisita arquivos coloniais e documentos históricos, subvertendo imagens que retratavam indígenas, negros e mestiços de maneira estereotipada. Ao recortar, recompor e intervir nessas imagens, Gê reinscreve corpos antes silenciados, criando novas possibilidades de memória. Sua prática conecta crítica social e potência poética, fazendo de cada obra um gesto político de reposicionamento.
Ao destacar Maxwell e Gê, a Bienal aponta para um presente em que artistas brasileiros — negros, periféricos, indígenas — não são exceção, mas protagonistas.
A 36ª Bienal não se restringe ao espaço físico do Ibirapuera. Duas iniciativas inéditas ampliam sua atuação. A primeira é Conjugações, programa público de encontros, performances e debates realizados em parceria com instituições culturais de várias partes do mundo. Essas colaborações buscam explorar diferentes formas de pensar a humanidade a partir de práticas locais.
O segundo projeto é Aparições, desenvolvido com a plataforma WAVA. Utilizando realidade aumentada, obras da Bienal se manifestam em locais específicos pelo mundo — do Parque Ibirapuera às margens do Rio Congo, da fronteira México–Estados Unidos a cidades na Ásia. A proposta é criar uma experiência global e sensorial, que conecta arte, tecnologia e território.
Com esses programas, a Bienal reforça sua vocação de ser não apenas uma exposição, mas um campo de circulação de ideias que atravessa continentes.