Na última semana, o longa “Ainda estou aqui”, de Walter Salles, recebeu três indicações ao Oscar. Trata-se de um acontecimento histórico: é a primeira vez que uma produção brasileira alcança tamanho destaque na maior premiação de cinema do mundo, concorrendo às categorias de Melhor Filme, Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Atriz.
À essa altura, é improvável que você, leitor, não tenha assistido ao filme mais falado do momento. Também é difícil que não tenha discutido, entre amigos e colegas, como a atuação de Fernanda Torres é capaz de emocionar qualquer um. Ou, então, como a caracterização de Selton Mello é impressionante. Mas e na direção de arte e na concepção dos cenários, você reparou?
“Ainda estou aqui” é uma adaptação do livro de mesmo nome de Marcelo Rubens Paiva. Ele remonta a história de seu pai, o engenheiro e ex-deputado carioca Rubens Paiva, que foi preso, torturado e morto pela ditadura civil-militar no Brasil. A trama se desenvolve com foco na figura de Eunice, mãe do escritor, que teve a vida cruelmente transformada após o desaparecimento de seu marido.
Essa narrativa – triste e angustiante, mas fundamental para a memória do país – chega ao público em um momento de extrema polarização e intensificação do conservadorismo, em diversos países. Uma conjuntura que se desdobra não apenas em aspectos sociais e políticos, mas também culturais, assim como acontecia nas décadas de 1960 e 1970.
E como a arte sempre reflete seu tempo e espaço, é evidente que o filme se utiliza de uma cenografia complexa e muito bem pensada para reforçar os valores e convicções da família. Nesse sentido, a casa dos Paiva (com quadros, pôsteres e peças de design da época) pode ser entendida como mais uma protagonista, já que transmite uma ideologia.
Localizada no bairro do Leblon, no Rio de Janeiro, a casa onde o casal e seus cinco filhos vivem passa por uma série de transformações ao longo do filme. No início, ela parece uma extensão da praia, o principal lazer da cidade maravilhosa. As crianças atravessam o portão para nadar no mar ou jogar vôlei na areia e voltam de biquínis e sungas molhadas para almoçar. Também é na casa onde reuniões de trabalho e encontros descontraídos acontecem, com direito à festas com uma vitrola tocando músicas de Juca Martins e Jane Birkin.
Nesses momentos, é possível observar um mobiliário que diz bastante sobre o estilo de vida da família. Na sala de TV, a famosa poltrona Mole chama atenção de quem acompanha um pouco de arquitetura e design. Desenhada por Sérgio Rodrigues no início dos anos 60, ela tem como inspiração o modelo de rede indígena. Larga e com bastante espaço para se espalhar, a poltrona oferece um conforto que nada se assemelha ao sentar comportado – o que, por si só, já se opõe à atmosfera militarizada da época.
Na sala de jantar, por sua vez, há uma pequena e inconfundível pintura. Um Metaesquema, de Hélio Oiticica – obra na qual o artista explora as relações entre o espaço pictórico e o ‘espaço do extraquadro’. Neste trabalho, Hélio buscava experimentar a maleabilidade das figuras geométricas, que dava movimento à composição. Posteriormente, esse estudo deu origem a obras como os Bilaterais (1959) e os Penetráveis (1961-1980), instalações que transformaram a concepção de arte no Brasil.
No filme, Oiticica também está presente no quarto das filhas adolescentes, um cômodo importante para compreender a estética e o pensamento da época. Nesse caso, não se trata de uma obra original, mas de um pôster que aparece fixado na parede junto à imagem de “Tropicália ou Panis et circencis”, disco lançado no final da década de 1960 por Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil, Nara Leão, Tom Zé e Os Mutantes.
A reprodução da bandeira “Seja marginal, seja herói” (1968) aparece como um símbolo da Marginália, movimento artístico e sociocultural marcado pela crítica ao conservadorismo e pela transgressão dos valores burgueses. Ela foi criada por Oiticica em homenagem a seu amigo “Cara de Cavalo”, um homem conhecido na marginalidade, que havia sido acusado de matar um policial. Como peça de arte, a frase passou a ser reconhecida como uma forma de contestar a polícia militar, ou seja, contestar a opressão imposta pelo regime ditatorial.
Com tudo isso, fica claro que o uso de obras de arte e design na concepção do cenário vai além de um simples pano de fundo visual. Em “Ainda estou aqui”, a moradia funciona como um tipo de protagonista silencioso, que comunica as tensões políticas e o clima emocional de toda a narrativa. Recordando os horrores da ditadura, o filme precisa ser assistido por todos os brasileiros, em especial aqueles que negam a nossa história.