Com inovações tecnológicas, narrativas profundas e gráficos cada dia mais realistas, os videogames fazem parte de um mercado surpreendente e há muito tempo deixaram de ser um tópico restrito ao universo infanto-juvenil. Entretanto, pensar em jogos como uma plataforma para se fazer arte digital é algo raro. E é exatamente isso que se propõe Gabriel Massan em seu novo projeto exposto na Serpentine Gallery.
Composto por três elementos inter-relacionados, Third World: The Bottom Dimension (Terceiro mundo: a dimensão inferior, em tradução livre), convida o público a um universo expandido: o jogo digital, criado a partir da experiência negra e queer de Gabriel no Rio de Janeiro, uma exposição física, em cartaz na Serpentine Gallery, em Londres, e tokens de web3, uma forma descentralizada de registro de arte digital. Além de Gabriel, o projeto tem colaboração de Castiel Vitorino Brasileiro, Novíssimo Edgar, LYZZA, Jota Mombaça e Ventura Profana, nomes proeminentes da arte brasileira.
Os videogames estão presentes na vida de Gabriel desde cedo. Em depoimento dado à Serpentine Gallery, que você pode conferir abaixo, conta como foi apresentado a The Sims ainda na infância. A partir daí, utilizou o jogo, que propõe simular situações da vida real, para criar suas próprias séries, novelas e revistas digitais.
Third World: The Bottom Dimension, também é um videogame. Está disponível para download na Steam, plataforma de jogos digitais para computadores, e pode ser acessado gratuitamente. Pensado como uma forma de replicar o sistema de desigualdades, Third World apresenta um mundo repleto de esculturas digitais criadas por Gabriel. Essa, na verdade, é a linguagem mais recorrente do artista e que tornou sua arte conhecida em todo mundo – Gabriel já expôs seus trabalhos em Berlim, Nova York, Tokyo, entre outros locais. Na concepção e desenvolvimento da obra, também atuam Castiel Vitorino Brasileiro, Novíssimo Edgar e LYZZA.
Castiel foi a responsável pelo primeiro nível. Seus trabalhos frequentemente envolvem temas como ancestralidade, espiritualidade e cura. Em Third World, cria uma narrativa não-linear, onde o personagem principal navega pelo complexo universo de arte digital de Gabriel e, aos poucos, passa a ser confrontado pelo ambiente e seus habitantes.
Já o segundo nível, Sòfo, foi desenvolvido em parceria com Novíssimo Edgar, artista multidisciplinar conhecido por sua atuação na música. Nesta área, a narrativa se mantém semelhante. Porém, temas como invasão, colonialismo, opressão e exploração de recursos estão mais presentes. LYZZA, por sua vez, atua também no design de som do trabalho. A DJ brasileira radicada na Holanda colabora na construção desta proposta de arte digital imersiva.
Comissionado pela Sepertine Arts Technoligies, programa da galeria britânica que incentiva projetos inovadores dentro da arte digital, o videogame Third World: The Bottom Dimension aborda, segundo release, a experiência negra brasileira. Em trecho disponível pela galeria, Gabriel explica que quis, mais que replicar, revelar o sistema de desigualdades, para que fosse possível perceber como ele é sufocante e pode modificar os comportamentos, formas de navegar no mundo ou até mesmo a percepção do próprio corpo. Os temas abordados não se restringem ao colonialismo, opressão e violência contra corpos negros e LGBT’s, mas também a caminhos possíveis para a arte e a sociedade, a partir da ecologia, conhecimento ancestral, fabulação crítica e conhecimento descentralizado.
A descentralização, aliás, é um dos temas principais em Third World: The Bottom Dimension, sendo este um dos pontos que torna a obra tão inovadora, para além de sua narrativa, estética ou sonoridade. O próprio conceito de arte digital a partir de videogames é algo ainda pouco explorado por artistas contemporâneos. Porém, mais que isso, Gabriel, seus colaboradores e a Serpentine Gallery disponibilizam um trabalho de arte digital para ser jogado e construído gratuitamente. Esta iniciativa está em completo alinhamento com correntes da arte contemporânea e tecnologia, pois traz uma maneira prática de se pensar interações descentralizadas: inúmeras pessoas em todo o mundo acessam a obra, construindo seu próprio trajeto, experiência e narrativas.
A segunda parte do projeto Third World: The Bottom Dimension é uma exposição física, que parte do jogo digital e expande seus princípios, em um ecossistema interativo. Nela, o visitante da Serpentine Gallery pode jogar o videogame em estações projetadas por Gabriel e que seguem sua estética particular, remetendo diretamente a suas esculturas digitais. De acordo com Gabriel, sua intenção era criar a experiência de adentrar memórias, possibilidades de narrativas e de vidas, concebendo um espaço onde as pessoas poderiam literalmente caminhar dentro de suas criações e seus trabalhos.
Além do videogame e das estações projetadas por Gabriel, a exposição contém trabalhos dos outros colaboradores. Castiel Vitorino Brasileiro, Novíssimo Edgar e LYZZA seguem presentes e, na mostra física, encontramos ainda Ventura Profana e Jota Mombaça. O grupo de artistas concebe um complexo ambiente que se propõe a navegar por instalações, colagem digital, textos, poesias, sons, músicas e, claro, arte digital, tudo a partir das lentes da decolonialidade, descentralização e do universo queer.
A terceira parte do projeto Third World: The Bottom Dimension envolve tokens web3, construídos na tecnologia blockchain da Tezos. Esta forma de conceber a arte digital também está fundamentada na distribuição de informações. Para entender melhor os conceitos, explicamos abaixo cada um desses termos.
A web3 é uma evolução do conceito original da internet e traz a descentralização e a participação direta dos usuários como ponto central de seu desenvolvimento. Na web2, as informações ficam centralizadas em grandes bancos de dados gerenciados pelas gigantes da tecnologia – como Google ou Meta -, enquanto web3 permite interações diretas entre seus usuários, sem intermediários. Para isso, há a tecnologia blockchain, base da web3. A tradução livre de blockchain seria algo como “corrente de blocos” e esta imagem ajuda a entender seu conceito. Trata-se de um registro público que armazena todas as transações da internet, de forma imutável e transparente. Os usuários podem acessar esses “blocos” livremente, verificando suas informações, por quem elas foram construídas e como foram trocadas. Os tokens, por sua vez, são ativos digitais, que representam alguma informação dentro da blockchain, podendo ser criptomoedas, por exemplo, ou, no caso da arte digital, NFTs. Para o projeto, a tecnologia blockchain utilizada é a Tezos, uma plataforma de código aberto, parceira da Serpentine Galleries e de Gabriel Massan.
Em Third World: The Bottom Dimension, os tokens digitais são participativos. Os visitantes que participarem da exposição física podem registrar suas memórias do jogo a partir de capturas de imagens e vídeos. Esses registros constroem um arquivo público de experiências, ações e perspectivas. Esta forma de se pensar a arte digital traz inovações para o conceito, pois graças à web3 e a tecnologia blockchain, todas as ações envolvidas ficam documentadas permanentemente, gerando um ambiente colaborativo, o que propõe uma descentralização do sistema tradicional de NFTs.
O projeto de Gabriel Massan e colaboradores demonstra a potência de uma arte digital que utiliza conceitos de uma forma prática. Para além da elaboração do videogame e de suas inovações estéticas ou temáticas, Third World: The Bottom Dimension propõe uma nova maneira de se pensar a concepção e circulação da arte e de produtos culturais. A descentralização se mostra como alternativa em um mundo desigual e complexo, com sérios desafios em diferentes frentes: ambientais, econômicas, políticas e no próprio mercado de arte. Um projeto que parte da colaboração e compartilhamento em sua concepção e estende esses ideais em toda a cadeia de exibição e circulação de seus produtos traz à luz novas possibilidades de se fazer e pensar arte.
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