O Prêmio Roswitha Haftmann é um prestigioso reconhecimento concedido anualmente a um artista contemporâneo de destaque no campo das artes visuais. Estabelecido em 2001 em homenagem à colecionadora suíça Roswitha Haftmann, o prêmio é atualmente o mais relevante da Europa e busca reconhecer e celebrar a contribuição significativa de artistas vivos que tenham deixado uma marca indelével no panorama artístico global.
Com uma generosa quantia em dinheiro como prêmio, o vencedor do Roswitha Haftmann Prize é selecionado por um júri especializado composto por renomados curadores, críticos e acadêmicos da arte, e seu trabalho é reconhecido como uma importante contribuição para a evolução e compreensão da arte contemporânea.
Com mais de 20 anos de premiação, a instituição anunciou no último dia 12 o vencedor de 2023: o brasileiro Cildo Meireles (1948), o primeiro latino-americano a ganhar o prêmio no valor de 150 mil euros. O júri avalia o conjunto da obra e em nota de divulgação, Yilmaz Dziewior, membro do conselho, elaborou sobre a decisão: “o júri ficou impressionado pelo talento excepcional do artista em envolver seu público tanto intelectual quanto emocionalmente com obras politicamente carregadas e esteticamente fascinantes”.
Nascido no Rio de Janeiro, Meireles emergiu como um dos principais artistas do movimento de vanguarda que transformou a arte brasileira na década de 1960. Junto com figuras como Lygia Clark e Hélio Oiticica, ele foi pioneiro na criação de um diálogo direto e visceral com o público, buscando engajamento e interação em suas obras.
Uma das características distintivas do seu trabalho é sua habilidade de criar instalações imersivas que estimulam os sentidos e convidam o espectador a participar ativamente. Ele frequentemente incorpora elementos táteis, sonoros e olfativos, expandindo a experiência estética além da visão e promovendo uma relação sensorial com a obra.
Ao longo de sua carreira, Meireles abordou uma ampla gama de temas, como repressão política, injustiça social, colonialismo e questões ambientais. Suas obras são frequentemente carregadas de simbolismo e metáforas, incentivando o espectador a refletir sobre questões complexas e urgentes da sociedade contemporânea.
Uma das obras citadas pela premiação é Desvio para o Vermelho, um de seus trabalhos mais emblemáticos. Criada entre 1967 e 1984, essa instalação consiste em uma série de objetos e elementos dispostos de forma a criar uma experiência sensorial e conceitual única para o espectador.
Seu nome faz referência a um conceito astronômico, caso particular do Efeito Doppler, de desvio para o vermelho, que é um fenômeno que ocorre quando a luz proveniente de uma fonte distante sofre um desvio para o espectro vermelho, indicando a expansão do universo.
A instalação envolve ambientes com objetos cotidianos e a cor vermelha está presente em toda a extensão, criando uma atmosfera intensa e simbólica. Ao percorrer o espaço, o espectador é convidado a interagir com os objetos e explorar os significados por trás de cada elemento.
Composta por três ambientes, o primeiro sendo uma ampla sala branca com um carpete vermelho, sobre o qual repousam móveis, objetos, plantas, líquidos, alimentos e obras de arte – todos vermelhos. O segundo é um ambiente mais estreito e escuro em formato quadrado, no qual uma garrafa no chão sugere um derramamento de tinta vermelha espalhada pelo piso. Por fim, o terceiro ambiente contém uma pia instalada e inclinada com uma torneira de metal da qual jorra líquido vermelho.
Meireles usa objetos comuns e os subverte, transformando-os em elementos carregados de simbolismo e crítica. A obra também questiona a relação entre o espectador e a obra de arte, convidando-o a refletir sobre seu papel na sociedade e sua capacidade de provocar mudanças.
Inserções em circuitos ideológicos também foi apontada como uma das obras relevantes da carreira. Desenvolvida entre os anos 1970 e 1980, essa série consiste em intervenções realizadas em objetos e espaços do cotidiano, com o objetivo de provocar reflexões das mais diversas naturezas.
A ideia por trás das Inserções em circuitos ideológicos é subverter e desestabilizar as estruturas e sistemas dominantes, infiltrando mensagens e questionamentos críticos em lugares inesperados. Meireles realizava intervenções em objetos comuns, como cédulas de dinheiro, garrafas de Coca-Cola, caixas de fósforo e até mesmo livros.
Um exemplo icônico dessa série é a intervenção feita em cédulas de dinheiro. Meireles carimbava notas de dinheiro com mensagens políticas, como Quem matou Herzog? e Yankees go home, e as colocava novamente em circulação. Essa ação buscava desestabilizar o sistema monetário e fazer com que as mensagens políticas alcançassem um público amplo e variado.
Outra intervenção famosa da série foi a inserção de mensagens críticas nas garrafas de Coca-Cola. Meireles gravava mensagens provocativas como instruções de como transformar a garrafa em um coquetel molotov, mensagens políticas ou a própria explicação do projeto. Essa ação questionava o papel das grandes corporações na sociedade de consumo e incentivava uma reflexão sobre os valores e ideologias por trás dessas marcas.
Inserções em circuitos ideológicos representa a preocupação de Meireles em utilizar a arte como uma forma de questionar, confrontar e transformar as estruturas e sistemas de poder presentes na sociedade. Suas intervenções propõem uma ruptura com a normalidade, estimulando o público a questionar e refletir sobre os discursos dominantes e os mecanismos de controle ideológico.
Cildo Meireles, recentemente em cartaz em São Paulo com a exposição “No reino da foda (1964-1987)” na Galeria Luisa Strina, continua a inspirar artistas e espectadores, desafiando as normas e ampliando os limites da expressão artística. O êxito no Prêmio Roswitha Haftmann 2023 reafirma seu lugar como um dos artistas contemporâneos mais significativos e influentes de nossa época.
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