Ao falarmos sobre mulheres na Arte, inconscientemente nos remetemos às vanguardas do século XX, período em que grandes artistas ganharam fama e alcançaram o sucesso. A luta feminina, porém, que busca por espaço e reconhecimento dentro da área, se dá por volta do século XVII, quando a Academia de Belas Artes de Florença aceita, pela primeira vez, uma pintora. Foi Artemisia Gentileschi que ficou mais tarde conhecida como a mulher que revolucionou a arte.
Filha primogênita do pintor Orazio Gentileschi (1563-1639), Artemisia nasceu em 8 de julho de 1593, em Roma, onde também passou a infância e parte de sua juventude. Em seus 12 anos de idade, sua mãe, e única figura feminina com quem tinha contato, faleceu, deixando-a com o pai e outros três irmãos dos quais ela ajudava a cuidar. Apesar do pouco tempo que tinha uma vez que dedicava muitas horas nas tarefas de casa, foi durante sua adolescência que, influenciada e apoiada por Orazio, Artemisia se interessou pela pintura.
Sua primeira experiência com o aprendizado das artes ocorreu no ateliê de seu pai e com ensinamentos do próprio, que além de grande pintor, era também muito amigo de Caravaggio (1571-1610), do qual alguns historiadores acreditam que Artemisia até chegou a conhecer.
Aos 18 anos de idade, Artemisia sofreu um estupro por seu tutor, Agostino Tassi (1580-1644), um pintor que frequentemente trabalhava com Orazio. Como o ato de abuso sexual até então não era considerado um crime, mas sim um desrespeito e ofensa a família, Agostino propôs um casamento que jamais aconteceu. Quase um ano após o ocorrido, carregando traumas que jamais seriam curados, a artista decidiu, juntamente de seu pai, denunciar seu abusador. Ele foi levado a um julgamento que levou cerca de sete meses.
Por estar inserida em um ambiente majoritariamente masculino e machista, apesar de contar sua história detalhadamente, ainda houveram descrenças em seu depoimento, fazendo com que passasse por diversas sessões de tortura para “assumir a verdade”. Embora submetida a exposição e humilhação, sendo chamada de prostituta e outras difamações de seu nome, Artemisia manteve-se firme com a denúncia. Em 12 de novembro de 1612 Agostino Tassi foi condenado a pena de cinco anos de prisão ou ao exílio perpétuo de Roma, porém ele nunca cumpriu nenhuma delas.
Mesmo tendo vencido o julgamento, a artista continuou sendo mal falada na cidade e, a fim de calar os comentários, seu pai organizou um casamento arranjado com o pintor florentino Pierantonio Stiattesi (1584-1638), com quem permaneceu casada por mais de dez anos.
Após mudar-se para Florença, onde passou a viver com o marido, Artemísia foi introduzida à corte dos Médici. Estes, da realeza da Toscana, conhecidos por possuírem um acervo com obras dos mais notáveis pintores italianos, como Botticelli, Michelangelo, Caravaggio e Donatello, aceitaram a artista e sua fama logo cresceu na cidade.
A pintora teve finalmente a oportunidade de ser alfabetizada, já que até então não sabia ler e nem escrever, e em 1616, fez história ao tornar-se a primeira mulher a entrar para a Academia de Belas Artes de Florença, sendo requisitada por ricas famílias de todo o país e até mesmo pela Igreja. Seu estilo Barroco inspirado em Caravaggio rapidamente conquistou prestígio.
Embora tenha crescido cercada por figuras masculinas, em suas obras Artemisia adotou a representação da mulher e o protagonismo feminino, muitas vezes pintando passagens bíblicas com heroínas em foco. Em algumas dessas pinturas fez até menção a si mesma ao pintar seu rosto nas personagens principais, evidenciando sentimentos de raiva, medo e incômodo.
Inicialmente inspirada no livro deuterocanônico “Judite”, do Antigo Testamento, e na obra “Judite e Holofernes” (1599) de Caravaggio, Artemísia pintou suas próprias versões da passagem, uma em 1613 e outra em 1620. Esta segunda sendo sua mais conhecida pintura.
Nelas, a artista se auto retrata como a heroína, que decapita Holofernes com a ajuda de sua aia. Tal representação contém significado ainda maior quando associada ao trauma que sofreu sendo vítima de abuso anos atrás. Pode-se perceber, inclusive, que em ambas as obras a protagonista expressa raiva e até mesmo gosto pelo ato que comete, diferentemente da obra de Caravaggio que ilustra a protagonista com medo e quase reprovação pela decapitação.
Uma análise mais profunda das técnicas e escolhas pictóricas de cada tela, permite comparar as sensações transmitidas por elas. Apesar de ambas partirem da técnica do chiaroscuro, Caravaggio utiliza cores terrosas e neutras em uma perspectiva linear em que todos os personagens aparecem alinhados no primeiro plano, o que gera menos movimento e imprime certa serenidade à cena. Nas obras de Artemisia é notável um alinhamento pictórico oposto. A artista constrói movimento e tensão através de linhas diagonais e verticais e escolhe cores vibrantes que intensificam de forma dramática o conflito da narrativa.
Transmitindo psicologicamente o sentimento de vingança por seu estuprador, suas versões tornaram-se símbolo feminista e inspiração para diversas outras artistas que sofreram e sobreviveram a abusos e assédios sexuais, como o caso da pintora e quadrinhista brasileira Juliana Lossio, que em maio de 2020 fez um incrível trabalho em sua releitura da obra. Em seu Instagram, Juliana conta relatos do abuso sofrido e ajuda outras mulheres através de sua arte.
As duas Judites de Artemisia estão localizadas no Museu de Capodimonte, em Nápoles, e no Uffizi Galleries, em Florença, respectivamente. Ambas são feitas a óleo sobre tela.
Em mais uma de suas ilustres obras, localizada no Palácio de Weissenstein, na Alemanha, Artemisia retrata a história de Susana, do livro de Daniel, do Antigo Testamento.
Na passagem, a moça se banhava em seu jardim quando dois juízes que frequentavam a casa a assediaram e ameaçaram dizer que ela estava com outro rapaz caso se recusasse a relacionar-se com eles. Susana recusou e foi condenada à morte, apesar do falso testemunho. Porém, um segundo interrogatório foi feito por Daniel, desta vez com os homens separados, e por não combinarem as respostas antes, foram descobertos e mortos.
A pintura foi a primeira feita pela artista, segundo o que há registro, e foi também um dos primeiros nus femininos que produziu, nunca tendo pintado um nu masculino.
Pintada a óleo sobre tela, a obra retrata uma história tirada do Livro dos juízes, do Antigo Testamento. Nela, Artemisia pinta Sísera, o general derrotado da Cananéia, sendo assassinado pela heroína bíblica, Yael, enquanto dorme. É mais uma de suas pinturas que podem transmitir os sentimentos de vingança por Tassi, uma vez que é notável a calma e o orgulho representados nas expressões faciais da protagonista enquanto assassina o homem.
Novamente a artista utiliza tons vibrantes e linhas diagonais na elaboração da cena. Aqui se vê um alto contraste entre o fundo e figura, ao ponto de suavizar o prego e o martelo que Yael segura e priorizar os segundos anteriores ao movimento iminente. Atualmente a obra pertence ao Museu de Belas Artes de Budapeste.
Artemisia Gentileschi, nos anos que se seguiram, viajou à Inglaterra para visitar seu pai em Londres e rodou pela Itália, passando por Veneza e Nápoles, onde se instalou e continuou produzindo até sua morte, em aproximadamente 1654. Após mais de quarenta anos de atuação a pintora rapidamente caiu em esquecimento à medida que outros artistas ascenderam em novos estilos, e sua história, embora muito significativa para o mundo da arte, passou a ser considerada apenas uma exceção.
Foi somente em torno da década de 1970 que críticos e estudiosos novamente reconheceram o valor de suas obras, e o feminismo, em seu ápice, as abraçou como símbolo de resistência e luta. Artemisia abriu portas para que as mulheres levassem sua arte ao mundo e ao reconhecimento, ainda que seu próprio feito tenha passado despercebido durante três séculos.
Atualmente, considerada uma importante figura para a História da Arte, a pintora recebe homenagens e exposições de seus trabalhos em todo o mundo, como a mostra “Artemisia Gentileschi em Nápoles”, que adicionou, no início de janeiro, mais quatro pinturas ao seu cânone. A exibição acontece até março na sede napolitana do museu Gallerie d’Italia.
Julia Mattioni é artista visual e estudante de Artes Visuais das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU).
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