Nos últimos anos, o surgimento de inúmeros projetos voltados às artistas mulheres, nas maiores instituições culturais do país, vêm reiterando o que já era visível: mulheres foram excluídas dos espaços de poder – incluindo a arte – ao longo de séculos de patriarcado. Exposições como “Mulheres radicais: arte latino-americana, 1960-1985” realizada na Pinacoteca de São Paulo em 2018, ou o ciclo anual do “Histórias das Mulheres” do MASP, que em 2019 dedicou sua programação principal ao tema em questão, são alguns exemplos.
Tais projetos que, em sua maioria se apresentam por exposições, cursos e debates, reforçam um caráter de revisão histórica, valorizando artistas que muito produziram mas pouco foram reconhecidas. Outros, se esforçam em dar visibilidade às artistas contemporâneas, que hoje produzem em um contexto um tanto mais possível, especialmente após conquistas sociais frutos das lutas feministas.
Todavia, é necessário compreender que o cenário está longe do ideal, pensando que as artistas mulheres vivem e produzem em sistemas que mantém configurações machistas e misóginas, o que interfere diretamente nas suas inserções nos circuitos artísticos – sendo esse apenas um exemplo específico dentro de um contexto amplo.
Com o intuito de valorizar as produções artísticas de mulheres e debater seus lugares no mundo das artes, o coletivo feminista Vozes Agudas – que nasceu em 2018 no Ateliê 397, em São Paulo – desenvolveu o Prêmio Vozes Agudas para Mulheres Artistas, que teve a primeira edição em 2020. Nesta primeira, foram premiadas três artistas, além de duas menções honrosas.
Agora, o projeto Vozes Agudas (VoA) realiza sua segunda edição de forma ampliada com uma série de novidades. Para falar sobre os pontos mais importantes desta edição e das melhorias do projeto, conversamos com a curadora e educadora Bruna Fernanda, uma das gestoras do Ateliê 397 ao lado de Érica Burini, Tania Rivitti e Thais Rivitti. Graduada em História pela FFLCH USP e mestranda em Culturas e Identidades Brasileiras no IEB USP, a pesquisadora também integra o coletivo feminista Vozes Agudas e o Grupo de Pesquisa e Curadoria do Ateliê397.
Além da premiação principal, a primeira edição realizada entre 2020 e 2021 alcançou cerca de trinta artistas através de exposições coletivas no Ateliê 397, produção de textos críticos e participação em lives e podcasts. Para que o alcance do projeto seja ainda maior, o coletivo decidiu tornar o Vozes Agudas uma chamada bianual para artistas mulheres e não-bináries, e não apenas uma premiação.
O júri desta edição é composto pela curadora Horrana Santoz, pela artista e professora Kássia Borges, e pela artista Vulcanica Pokaropa, uma das premiadas no primeiro Prêmio VoA. Integrantes do coletivo Vozes Agudas também participaram do júri.
A premiação principal selecionou 5 artistas: Azizi Cypriano (RJ); Julia Saldanha (RJ); Mariana Rodrigues (SP); Olinda Yawar Tupinambá (BA); e Sy Gomes (CE). Nesta parte da premiação, cada artista recebe R$1.000,00 (mil reais) e acompanhamento crítico com membros do coletivo Vozes Agudas, que produzem textos críticos sobre os trabalhos das cinco contempladas.
Do ponto de vista social de um projeto que discute questões de gênero, a inserção de pessoas não-binárias na chamada é o maior avanço, como comenta Bruna:
“Chegamos nesse momento em que vimos que falar sobre gênero precisava ir além da ideia de falar de mulheres. Então ampliamos também para esse público focando na ideia de que artistas que têm diferentes performance de gênero, como mulheres cis ou trans, e pessoas não binárias, sintam-se à vontade de se inscreverem – também pensando que a não-binariedade é um espectro muito amplo da performance de gênero”.
As discussões de gênero, que já são centrais no coletivo e no grupo de estudos, alcançam outras camadas do sistema das artes através da chamada VoA. Um ponto importante é reconhecer que, seja na gestão do Ateliê 397, no coletivo feminista e nos projetos recebidos pela chamada, as mulheres cis representam a maioria. No entanto, a curadora reforça o compromisso do projeto em valorizar outras vivências:
“[…] As mulheres trans, por exemplo, que envolvem a outra camada de opressão e de sentido. Existe também um grupo grande de pessoas não binárias que, muitas vezes, justamente por não atenderem essa expectativa de gênero binária, também são excluídas e passam por inúmeros processos que achamos importante falar. Esse é um grupo muito significativo dentro da produção artística contemporânea”.
Um dos principais momentos de encontro entre o público e o projeto é a exposição coletiva com as artistas selecionadas pelo júri. Na Chamada VoA 2022-23, foram selecionadas 24 artistas – incluindo as premiadas – para uma exposição que ocorre simultaneamente em dois espaços: o galpão do Ateliê 397 e o galpão da Galeria Vermelho, que receberá pela primeira vez uma exposição.
“Para o galpão pensamos em obras que colocassem algumas questões que surgem do próprio espaço que estamos usando, como, por exemplo, as relações de trabalho”, comenta a curadora, que destacou a presença das artistas Ana Raylander Mártis dos Anjos, Arorá, Caroline Ricca Lee, Julia Saldanha e Nalu Rosa no galpão da Vermelho.
A parceria com a Galeria Vermelho e sua reserva técnica, proporcionou um diálogo entre a curadoria e a artista Carmela Gross, representada pela galeria parceira. Foram escolhidos trabalhos da artista para integrar a exposição nos dois espaços expositivos. A ideia é propor diálogos entre essas artistas emergentes, como as contempladas pela chamada, com artistas renomadas como Carmela Gross.
“Um ponto que talvez una a grande maioria desses trabalhos, é como essas artistas pensam no corpo a questão do espaço. Tem obras que entram no corpo pela experiência social de serem lidos como binários ou não binários – e, quando binários, dentro do espectro da feminilidade -, mas também não colocam isso como uma questão essencialista: não é que parte do corpo, mas o corpo que existe na construção social e subjetiva, que se dá através do tempo também”, comenta Bruna Fernanda sobre essa multiplicidade e pontos de encontro de discursos.
“Então tem relações de memória, relações familiares, relações sociais – e que também é um corpo que trabalha, que começa a sair dessa centralização em si e vai para o espaço”, completa a curadora.
Para fortalecer conexões entre artistas e circuitos artísticos de diferentes regiões do país, o projeto VoA estabeleceu uma série de parcerias para a realização de residências. Neste ano, foram anunciadas seis artistas para participarem de residências em quatro lugares diferentes.
As artistas Beatriz Paiva,de Belém e Mikaelly Raielly (Mika) de Teresina, Piauí foram selecionadas para a Residência Uberbau de São Paulo. O projeto Mirante Xique-Xique, em Igatu, Bahia, recebe a artista Thaís Iroko, do Rio de Janeiro. Já na residência Kaaysá, em São Sebastião, São Paulo, participa a artista de São Paulo, Thiá Sguoti. Por fim, a Usina de Arte de Recife recebe Maria Macedo, de Juazeiro do Norte, Ceará, e Yara Pina, de Goiânia.
As ações do coletivo não se encerram nesta exposição, e devem se estender ao longo do ano de 2023, como é previsto pela chamada. Bruna Fernanda também ressaltou a importância do apoio de agentes externos, como a colecionadora e articuladora Alayde Alves: ”[…] uma figura central que consegue reunir outras colecionadoras e outras pessoas interessadas em arte que apoiam e acreditam no nosso trabalho e no nosso projeto.”
O Vozes Agudas, por todas as suas linhas de ação, convoca todos os agentes do sistema a um debate de necessidade permanente. Um debate sobre gênero e sobre nossos lugares e responsabilidades no sistema das artes e na sociedade como um todo. Para além das questões de gênero, a curadora lembra que esses debates trazem intersecções de “raça e classe, localização geográfica, sexualidade”.
“Do mesmo jeito que estamos falando de mulheres artistas, isso também incide sobre o trabalho de todos os outros agentes dentro do sistema. Nós somos curadoras, críticas, produtoras, gestoras. Enfim, falar sobre isso é uma postura política, assim como colocar isso como debate no momento em que estamos vivendo, uma situação social tão instável e violenta, em que o debate público quase não é mais possível. Como se fosse um campo minado, por ser uma situação muito hostil para grande parte das pessoas”, completa.
O Coletivo realiza suas ações de forma independente e voluntária, sem patrocínios diretos, o que configura um caráter de resistência, já que as integrantes não recebem pagamentos por seu trabalho. “O VoA em si nasce através dessa escuta, da troca e desse trabalho coletivo”, finaliza a curadora.
Diogo Barros é curador, arte educador e crítico, formado em História da Arte, Crítica e Curadoria pela PUC SP.
Ana Raylander Mártis dos Anjos (SP, 1995); Arorá (RJ, 2000); Azizi Cypriano (RJ, 1998); Carolina Itzá (SP, 1983); Caroline Ricca Lee (SP, 1990); Geoneide Brandão (PE, 1999); Joana Burd (RS, 1991); Julia Saldanha (RJ, 1986); Laíza Ferreira da Silva (RN, 1988); Maria Cristiane (RJ, 1983); Mariana Rodrigues (SP, 1995); Mayana Redin (RJ, 1984); Milla Jung (PR, 1974); Nalu Rosa (SP, 1989); Nanny Ribeiro (MA, 1989); Natalie Braido (SP, 1996); Natali Mamani (SP, 1995); Nati Canto (SP, 1992); Olinda Yawar Tupinambá (BA, 1989); Raquel Nava (DF, 1981); Rap Plus Size (SP); Sy Gomes (CE, 1999); Tetê Lian (SP, 1998); Yara Dewachter (SP, 1968). Artista convidada: Carmela Gross.
Curadoria: Bruna Fernanda, Érica Burini, Khadyg Fares, Thais Rivitti
Abertura: 24 de setembro, a partir das 14h
Visitação 24/9 a 23/10
Endereços e horários:
Galpão da Vermelho: Rua Cônego Vicente Miguel Marino, 72/74, Barra Funda | quarta a sexta-feira, das 14h às 18h
Ateliê397: Rua Cruzeiro, 802 – Barra Funda | Quinta e sexta-feira, das 14h às 18h; sábado, das 11h às 19h; domingo, das 11h às 18h
Para conhecer mais sobre o Vozes Agudas, visite a página do projeto neste link.