Um panorama distópico. Vivenciamos uma crise de saúde pública de dimensões sem precedentes, abrindo caminho para outras crises: social, econômica, humanitária. Como apresentamos no texto O mundo da arte começa a agir diante da crise gerada pelo corona vírus, frentes da arte começaram a se articular para auxiliar a população mais vulnerável durante a crise atual. Mas o que acontece com todos aqueles que compõem este mundo, que vivem dele: os trabalhadores da arte? De artistas a curadores, de produtores a técnicos de iluminação e som, de vendedores a montadores, agentes de limpeza e segurança, e todos profissionais que trabalham em galerias, instituições e centros culturais. Com a paralisação de todas as atividades, a princípio no primeiro semestre do ano e, sem previsão de retomada, todo o setor enfrenta um verdadeiro desafio de sobrevivência e adaptação.
O universo da arte e da cultura necessita do espectador, o agente que dá vida aos trabalhos com sua ação. Se não era tão perceptível antes, agora ficou evidente como o público é fundamental para a sobrevivência de aparelhos culturais, qualquer que seja o perfil desses. Contudo, a paralisação das instituições não significou a paralisação de muitos profissionais.
Qual postura artistas assumem frente a um cenário apocalíptico?
Diante de uma situação obscura e inédita, cada indivíduo pode responder de alguma forma, incluindo o silêncio, o resguardo, respeitando o tempo necessário para processar todo o contexto vivido. Todavia, para muitos, o processo criativo é fundamental para organizar as ideias, as percepções: é um modo de se localizar no mundo, seja este qual for. Pensemos que a potência artística está na capacidade de projeção: de olhares, caminhos, possibilidades e, em suma, novos mundos. O pensamento artístico é uma forma de reação, vejamos então como alguns artistas respondem a esta conjuntura, nos convidando a adentrar esses processos, compartilhando seus prismas.
O cotidiano foi objeto de investigação da arte em diversos momentos da história. Neste instante, imersos em suas residências, artistas reelaboram seus universos pessoais, experimentando com elementos corriqueiros, se utilizando das ferramentas disponíveis dentro de casa. A residência, se já não era, foi transformada em ateliê. Assim percebemos no trabalho de Hugo Bachiega, fotógrafo paulistano. Elaborando registros com objetos banais, recombinados em situações detalhadamente planejadas, a rotina na quarentena tem suas ordens visuais suspensas pelo fotógrafo, na medida em que retira dos objetos suas funções originais. Bachiega, que já possuía essa pesquisa pessoal há anos, antes que o isolamento fosse imaginável, aproxima suas fotografias aos processos surrealistas. Encontramos em sua poética a síntese do que muitos buscam a partir da condição de isolamento: a ressignificação do ordinário.
Independente da mídia utilizada para produção de trabalhos, as plataformas digitais se tornaram o principal meio de exibição para profissionais da arte neste momento. Redes sociais ganham cada vez mais engajamento, ferramentas que já existiam são ampliadas e novas são criadas. Aqueles que já exploravam o universo digital estendem suas pesquisas, como Vitória Cribb, artista residente em Campo Grande no Rio de Janeiro. Cribb utiliza recursos da internet para apresentar trabalhos em 3D, enquanto os meios de exposição digitais se mostram cruciais para um alcance mais amplo de sua produção. A artista multidisciplinar experimenta os limites entre o real e o fictício na arte digital, e participa de uma série de projetos nessa quarentena. Entre eles está a plataforma AINDA MT NADA, projeto criado na quarentena por Felipe Barsuglia e Yan Copelli.
Essa plataforma se baseia em um link aberto para interação de qualquer pessoa que o acessa por um computador, tendo a chance de modificar os elementos presentes na tela, como gifs, imagens, textos, interagindo diretamente com as propostas do site. Cribb, assim como uma série de artistas convidados, ocupou a plataforma e apresentou a pesquisa W97M/MELISSA, referindo-se a um vírus que se espalhou por computadores nos anos 90, causando grande prejuízo financeiro e dano a sistemas informacionais.
A produção da artista transpassa a figura humana por transmutações, distorções, envolvendo-as em novas atmosferas. Desta forma ela questiona estruturas sociais e o comportamento humano, partindo muitas vezes de metáforas biológicas, incluindo as variações do significado de “vírus”. Cribb propõe alternativas para o olhar sobre a relação do corpo humano em uma era marcada pelas relações sociais integradas ao virtual, evidenciando como sua investigação é essencial para vislumbrarmos novos rumos no meio social e artístico.
As novas formas de atuação no mundo digital deverão influenciar a abordagem de iniciativas culturais nas redes. Na medida em que artistas ampliam sua atuação nessas plataformas, movimentando as redes sociais com trabalhos antigos e novos, iniciativas curatoriais online começam a ser propostas. Estas promovem a criação de constelações, ligando pesquisas, obras e artistas, face a tanto conteúdo divulgado atualmente. O projeto etcetc, desenvolvido pela curadora Carolina Lauriano e o artista Raphael Escobar, foi um dos primeiros a surgir nessa linha na quarentena. Na conta do Instagram criada pela dupla, cada artista e/ou curador convidado tem 24 horas para apresentar sua curadoria afetiva, construída de acordo com sua própria rede pessoal, sem critérios ou metodologias pré-estabelecidas. Inaugurada no dia 6 de abril – com Práticas do Fracasso, trabalho de Victor de La Roque – pela curadoria da artista Élle de Bernardini, etcetc já apresentou mais de 14 constelações com dezenas de trabalhos.
Apesar do aumento no engajamento digital, a maioria dos trabalhadores da cultura não encontra nesse meio a complementação parcial ou total da renda. A falta de propostas para a sobrevivência do setor cultural, por parte do governo federal e grande parcela das gestões estaduais e municipais, contribuiu para que a categoria implantasse iniciativas próprias. A construção de frentes se mostra essencial neste momento, como vemos na criação dos projetos Quarantine Brasil e p.art.ilha. O primeiro propõe um novo modelo de comercialização de obras de arte, no qual todos os trabalhos têm o mesmo preço, e todas as vendas são igualmente distribuídas entre os artistas integrantes da iniciativa. Além disso, o projeto Quarantine criou um fundo extra para auxiliar pessoas trans afetadas pelo corona vírus, assistidas pela Casa Chama, organização sociocultural direcionada à população LGBTQIA+.
Já o projeto p.art.ilha, lançado no dia 1 de maio, configura uma frente formada por pelo menos 18 galerias, reunidas no Instagram com o intuito de facilitar a venda de obras de arte durante a quarentena. Entre outros fundos emergenciais direcionados para artistas, está o Fundo Colaborativo Emergencial para Artistas e Criadorxs (FunColab) do Solar dos Abacaxis. O Prêmio PIPA optou por direcionar seu apoio emergencial, PIPA em casa, apenas para artistas que participaram de edições do conhecido prêmio nacional desde 2010. Dentre os 127 trabalhos expostos em uma mostra virtual na plataforma do prêmio, 10 artistas participantes foram escolhidos para receber o valor de 5 mil reais cada.
Como reforço, editais de incentivo foram criados para estimular a elaboração de projetos de artes visuais, música, artes cênicas, literatura, entre outras áreas. Concebido pelo Itaú Cultural, “Arte como Respiro: Múltiplos Editais de Emergência” é dividido em três editais lançados em momentos diferentes, sendo o primeiro voltado para as artes cênicas e dança, divulgado nos primeiros dias de abril. Nestes, artistas e produtores culturais participam com ações desenvolvidas durante a quarentena ou já existentes, com a condição de que haja uma interação especial durante a nova apresentação no isolamento. Os outros editais são destinados à música e às artes visuais. Com outra abordagem, o Instituto Moreira Salles (IMS) estruturou o Programa Convida, anunciando a destinação de 500 mil reais a cerca de 60 ações promovidas por profissionais e coletivos convidados pela instituição. Entre as atividades, das quais parte já está disponível no site do IMS, prevê-se a apresentação de ensaios críticos, trabalhos de arte, além de ações sociais em áreas vulneráveis através de coletivos parceiros.
Os museus foram as primeiras instituições fechadas pelas medidas de prevenção ao contágio do COVID-19, em meados de março. Logo passaram a desenvolver propostas de exposições online, como fez o Museu da Diversidade Sexual ao abrir a convocatória para artistas comporem a Queerentena, sua primeira exposição digital. Mas muitos dos profissionais responsáveis pela manutenção dos espaços culturais em todo o país tiveram seus contratos suspensos, e essa maioria não é levada em consideração nos editais e fundos emergenciais citados ao longo do texto. Desta forma, estes contam com campanhas como a Backstage Invisível, uma cooperação entre a Epah Studios e o grupo Ajuda a Graxa – SP, que está arrecadando doações para a distribuição de cestas básicas para esses trabalhadores.
Não obstante, nesse momento, o setor educativo reafirma sua importância no funcionamento dos museus e a adaptação a todo tipo de situação. Fundamentados pela mediação – entre obra, público, instituição, outros setores – aqueles educativos que não sofreram com cortes e demissões na quarentena, seguem construindo programas e conteúdos de interação para com seu público, agora distante. O educativo do MIS Experience, por exemplo, desenvolveu uma série de atividades para o Instagram do museu, incluindo posts interativos, lives, tutoriais, ilustrações, entre outras.
Se por um lado essa crise evidenciou como os aparelhos culturais necessitam da ativação do público, temos como reflexo uma interdependência, pela qual compreendemos o valor da arte na manutenção do bem-estar individual e coletivo. Que a consequência disso seja a valorização e reconhecimento de cada componente do campo da arte enquanto trabalhadores essenciais, engrenagens fundamentais para uma sociedade que se transforma com, e pela cultura. Às nossas referências que partem neste período nebuloso, prestamos homenagens, e seguimos com o dever de honrar seus legados.
Diogo Barros é curador, arte educador e crítico, formado em História da Arte, Crítica e Curadoria pela PUC SP.
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