É possível escrevermos histórias das artes através de retratos. A figura humana sempre teve um protagonismo na arte em diversas linguagens como a pintura, o desenho, a escultura e outras. Toda obra de arte, mesmo que de modo indireto, fala um pouco sobre seu autor. O foco deste texto são as obras que têm como princípio a auto representação em autorretrato do artista. Ou seja, o tipo de trabalho em que o artista reflete sua própria essência, muitas vezes através da própria imagem.
A realização de um autorretrato pode ser compreendida como um ato de afirmação da própria existência do artista. Todo autorretrato envolve também uma série de escolhas, pelas quais o artista define quais são os elementos valorizados nessa materialização de si na arte. Quais cores, formas, gestos, expressões, dimensões e outros elementos são os melhores para cada representação?
Alguns artistas produziram autorretratos que entraram para a história da arte por sua originalidade. Muitas vezes pela história de vida do artista ou por qualidades da própria obra, esses retratos marcam um novo ponto de partida para outros artistas produzirem suas imagens.
Quando o assunto é autorretrato, a artista mexicana Frida Kahlo sempre aparece em destaque devido a importância que esse tipo de obra teve em sua vida. Através da pintura, a artista refletia suas condições físicas e emocionais, especialmente depois de sofrer um acidente que a deixou acamada.
Suas composições, carregadas de elementos simbólicos, narram suas dores e sentimentos de modo expressivo. Hoje, seu rosto pintado e fotografias se tornaram imagens extremamente populares, para além do universo das artes visuais. A artista, com seus retratos se tornou um símbolo de resistência e força feminina.
Neste ano, um de seus autorretratos se tornou a obra latino americana mais cara da história, sendo vendida por 35 milhões de dólares na Sotheby’s, em Nova York.
Um dos maiores artistas holandeses, e um dos mais emblemáticos da arte européia, o pintor e gravador Rembrandt Harmenszoon van Rijn, é famoso por suas pinturas históricas e seus autorretratos.
São dezenas de autorretratos produzidos por Rembrandt que formam uma espécie de linha do tempo. Eles nos permitem acompanhar o envelhecimento do artista e as mudanças que vão ocorrendo na forma como ele se via, assim como os estilos de pintura que iam mudando em cada obra e época.
O mais prestigiado pintor pós-impressionista, Vincent Van Gogh, produziu uma série de autorretratos que fizeram parte dos seus estudos de figura humana na pintura. Esses retratos trazem suas marcas principais: pinceladas carregadas, cores vibrantes e uma carga emocional na composição. Todas essas características estão presentes em obras com outros temas mas, nestes retratos, estão sintetizadas em sua face. O trabalho mais polêmico de Van Gogh neste gênero talvez seja o retrato em que o artista se representa após ter cortado parte de sua orelha.
O retrato é um dos gêneros mais populares na fotografia, em diversos contextos. É dentro deste estilo que diversos fotógrafos experimentaram com a captação de sua própria imagem, seja em cenas mais simplificadas ou extremamente construídas, chegando à construção de novas personagens.
Cindy Sherman é um dos maiores nomes contemporâneos na temática do autorretrato. Ao longo de décadas a artistas desenvolveu uma pesquisa consistente em torno da criação de personagens e a construção de imagens em diversas mídias. A cada autorretrato, a artista se caracteriza de modo a ficar irreconhecível.
Integrante do movimento modernista no Brasil, a pintora Tarsila do Amaral também produziu autorretratos que marcaram sua trajetória. Desenhos e pinturas nos apresentam a personalidade da artista, assim como sua posição social e inserção no meio artístico.
Na arte contemporânea brasileira também possuímos trabalhos que refletem questões relacionadas à identidade e a representação pessoal na imagem. Uma das obras mais conhecidas nesse sentido é “Procuro-me”, da artista Lenora de Barros, que já foi exposta em diversos contextos e ganhou muitas possibilidades de interpretação. No conjunto de fotografias, a artista se retrata em diversas situações, variando suas expressões faciais e sua aparência, criando diversas personas.
A história das imagens e dos retratos, tornou o rosto – ou o busto – a maior referência de identificação de uma pessoa. Como ocorre nos documentos de identidade, o rosto é ainda considerado a maior forma de representação identitária. Todavia, muitos artistas encontraram outras formas de materializar um aspecto de sua subjetividade.
Símbolos, cores, materiais específicos, animais, alegorias, e tantas outras coisas podem se configurar como um autorretrato a partir de ligações simbólicas com o universo do artista. É o caso da obra de Rodrigo Linhares que foi exposta no Paço das Artes neste ano. No desenho, o artista se representa através da figura de um corvo.
Além desta forma simbólica de retrato, o artista também experimenta outras posições, como quando se retratou de costas na obra Rodris, da mesma série “Rebote”, do corvo.
Durante muito tempo foi restrito às artes visuais a produção da auto imagem. Hoje, a tecnologia democratiza as ferramentas para a formação dessas imagens. A selfie se transformou em uma mediação pessoal nas redes sociais, um cartão de visita que resume sua personalidade. É necessário, contudo, pensar na diferença de tempo entre um autorretrato artístico e uma selfie, especialmente pelo primeiro envolver escolhas mais complexas.
A arte se desenvolve em diversos contextos como uma necessidade de expressão, refletindo questões humanas, entre o individual e o coletivo. A necessidade de uma materialização da própria imagem feita por um artista diz muito sobre sua relação com seu próprio universo. Deste modo, mesmo quando um artista retrata uma outra pessoa ou sua comunidade, utilizando suas ferramentas de trabalho, ele acaba se retratando junto.
Diogo Barros é curador, arte educador e crítico, formado em História da Arte, Crítica e Curadoria pela PUC SP.
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