Explorar os limites do corpo e as relações plásticas entre arte e vida. É assim que a artista Lia Chaia entende a pesquisa que gera sua performance e experimentações artísticas.
Em Faces, obra de 2016, a artista veste 3 máscaras ao redor da cabeça e se movimenta de forma que confunde o olhar de quem observa. A ideia de que a cabeça não encaixa no corpo, a sensação de estranhamento e tontura estão presentes no trabalho.
Interessada em sentir o potencial das observações que surgem no dia a dia, suas obras são inspiradas em suas inquietações e reflexões. Dentro do circuito artístico brasileiro, seu trabalho está inserido num espaço de grande destaque ao buscar várias linguagens expressivas a partir da performance.
O espaço dedicado hoje para projetos de performance é amplo, tendo programações em grandes instituições como a Pinacoteca de São Paulo e o Museu de Arte Moderna de São Paulo e mostras anuais como a VERBO na Galeria Vermelho.
Mas, essa história é recente e a performance foi alcançando seu espaço aos poucos, tendo suas primeiras manifestações com Flávio de Carvalho na década de 30.
Ali se tem o primeiro registro do que seria a linguagem da performance, sem necessariamente adotar este termo, que apenas anos depois veio a tomar protagonismo.
Flávio chamava seus trabalhos de “experiência”, e não dá para dissociar o caráter experimental da performance, cuja linguagem se transforma constantemente ao abrir o diálogo com outras vertentes da arte visual.
O que se vê na performance é o deslocamento do objeto artístico para o momento presente da ação. Não se trata apenas de um objeto artístico que se propõe a representar a intenção do artista a partir de linhas, cores e elementos estéticos. Se trata de entender que a ação do artista pode vir a ser uma narrativa artística. A ação se configura como parte fundamental da apresentação do trabalho, sendo impossível a compreensão da obra sem ela.
Com Jackson Pollock essa noção já se manifestava nos action paintings e com Joseph Beuys na body art. Essas denominações foram surgindo junto às reflexões dos artistas sobre o corpo e o movimento na arte, caminhando para chegar hoje no que entendemos por performance.
Os artistas dos Estados Unidos e do Brasil despertaram para as mesmas questões relativas à expansão da arte enquanto movimento e corpo, entre as décadas de 1930 e 1950, tendo, porém, motivações distintas.
Nos Estados Unidos, essas experimentações aparecem como a intenção de rever a linguagem artística. Pensar a arte pela arte, através de suas próprias questões poéticas possibilitou que os artistas revisitassem os meios e tivessem a liberdade de experimentar, inovando nas formas de produzir arte.
Jackson Pollock fez pinturas a partir de movimentos aleatórios. Diferente do comum, onde o artista se adapta com o objetivo de pincelar uma determinada cena, a action painting é a consequência plástica das movimentações aleatórias do artista. A tela é o testemunho, mas é a ação que protagoniza.
Na body art, a interdisciplinaridade com o teatro é uma forma de entender a vertente de Joseph Beuys. A compreensão é muito simples: o corpo é arte. Não há objeto que se transforme em arte perene, não há instrumentos que constroem o objeto. Há, sim, elementos que compõe a apresentação do artista, mas a obra é o corpo e o corpo, a obra.
No Brasil do mesmo período, a arte pela arte já não é a principal preocupação dos artistas. Em um ambiente hostil de privações de direitos sociais, políticos e civis, surgem movimentos de “contracultura” que conduzem a reflexão política através da arte.
Cildo Meirelles é a referência neste termo por suas “Inserções em circuitos ideológicos”; objetos como notas falsas de 0 dólar, adesivos em garrafas de refrigerante e carimbos em dinheiro com questionamentos acerca de polêmicas da ditadura circulando normalmente junto aos objetos cotidianos. Apesar de não ser propriamente uma performance, ilustra como o momento impulsionou as movimentações dos artistas para esses resultados.
A repressão do corpo e da sexualidade se tornam frequentes na época e Antonio Manuel encontrou na performance uma maneira de abrir espaço para a discussão com O Corpo é Obra, performance realizada no MAM Rio, na qual aparece nu. O registro desse ato é hoje uma outra obra com o nome de Corpobra, composta por uma foto do artista e uma tarja preta na frente de sua parte íntima. Um botão ao lado permite trocar a censura pela visualização da foto original.
Todas as manifestações no Brasil são, também, uma maneira de subverter a lógica do mercado, cujo objetivo é transformar a obra em objeto de culto, de valorização. A efemeridade e a sua condição de encerramento subvertem o sistema de arte enquanto agente da permanência e, consequentemente, fogem com mais facilidade, da censura imposta pelo regime militar da época.
É possível verificar como esses trabalhos, cada um à sua linguagem, construíram as bases do que hoje entendemos por performance.
Vejamos Ágora, trabalho de 2019 do artista Maurício Ianês. Apresentado na Pinacoteca de São Paulo, uma das salas foi reservada para o artista que, durante a exposição “Somos muit+s: experimentos sobre coletividade” se propôs a servir um café e se sentar para conversar com os visitantes que quisessem interagir. As paredes, pintadas de vermelho, tinham canetas à disposição para utilização do público. Após alguns dias, estavam cheias de escritos dos mais diversos tipos. Eram registros dos visitantes que ali tinham a liberdade de expor seus pensamentos dentro de um museu. A sala se construiu como um espaço de exposição, de diálogo, de silêncio. A escrita, a conversa, o desenho, as cores; tudo é comunicação. E o artista presente, foi testemunha e mediador dessas relações.
Algo que acontece ali e apenas ali, que se concretiza na troca e dissolve a força da autoria do artista enquanto único agente de produção de sentido é o que se propõe na maior parte dos trabalhos de performance atualmente.
O vídeo foi um elemento importante na emergência dessas proposições de performance. Marca Registrada, da artista Letícia Parente, não pode deixar de ser mencionada por ter sido uma das primeiras narrativas performáticas em vídeo. A artista borda na sola do pé a inscrição “Made in Brasil” com agulha e linha preta. A obra questiona os limites de pertencimento e objetificação ao passo que registra a si como uma mercadoria.
O vídeo também serviu como uma maneira de registrar e capturar um pouco do que foi o trabalho no momento em que foi apresentado. Dra. Diva, de Juliana Notari, foi registrada em vídeo, mas não se propôs a ser uma obra audiovisual. O que se tem são fotos e vídeos para que o projeto não caia no esquecimento e se limite àqueles que estiveram durante a exposição.
Retomando o trabalho de Lia Chaia, percebemos como ele caminha por essa fronteira. Está longe de se limitar apenas ao vídeo ou aos materiais plásticos, mas estuda e alarga o recurso da multidisciplinaridade da performance ao utilizar o vídeo como plataforma, o vídeo como registro (Bolas, 2016) e os objetos plásticos como complementares à base conceitual.
É por esta razão que a dificuldade de definir a performance é tema tão recorrente no meio da crítica de arte. E, mesmo na tentativa de definição, o que se encontra é apenas um espectro dos projetos artísticos contemporâneos que fogem do cubo branco e de coisa qualquer que não a liberdade de explorar.
Victoria Louise é redatora da ArtSoul formada pela PUC-SP em Arte: História, Crítica e Curadoria e Gestão Cultural
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