Seios e posições sensuais já foram reproduzidas ao longo da história da arte, sem, no entanto, tirar a expressão blasé dos observadores. Mas, no último dia de 2020, para combinar à energia caótica do ano, a obra Diva, da artista Juliana Notari foi divulgada, não só aniquilando a postura blasé do público, mas suscitando as reações mais escandalosas por parte de uma multidão virtual raivosa.
O que se viu, no post feito pela autora nas redes sociais, não foi nada mais do que fotos da obra finalizada e em construção e a celebração do trabalho de uma equipe engajada durante 11 meses na concretização do projeto.
As reações se voltaram, porém, à própria estética do trabalho: uma escavação de 33 metros de altura que faz referência à uma vulva gigante e se assemelha ao mesmo tempo à imagem de uma grande ferida que pulsa em tons fortes de vermelho, com profundidade de 6 metros, num extenso jardim verde da Usina de Arte de Pernambuco.
Os mais de 27 mil comentários, em sua maioria não dignos de reprodução nesta matéria, manifestavam o incômodo e não raro ódio, ao se deparar com a imagem de uma vulva em si e, claro, em posição de tão destaque. Até aqui, sem novidades.
Note-se que o ponto não é a nudez, mas a referência a um órgão do corpo não sensualizado. Diferente da nudez explícita, aquela que diverte, que entretém e se mostra prazerosa ao olhar do sexo oposto, a nudez não erótica incomoda. A nudez feminina é aceita quando sensual, quando objeto sexual, jamais quando celebrada por sua anatomia, independência e potência de poder.
Mas, para além da questão feminista, o corpo masculino, trans, idoso, também sofrem com o olhar de desinteresse e é alvo de repulsa quando não se manifesta como sinônimo de prazer sexual.
Uma referência inevitável é a performance La Bête, de Wagner Schwartz apresentada em 2017 no 35º Panorama de Arte Brasileira. A performance se baseia na famosa obra Bichos da artista mineira Lygia Clark na qual um objeto metálico convida o participante a manipulá-lo e dialogar com as suas formas.
A mesma proposta está no trabalho do artista que se encontrava nu e à disposição das manipulações dos visitantes que se propusessem a interagir com seu corpo. A participação de uma criança acompanhada de sua mãe, causou intensa discussão e até linchamento virtual ao artista. Uma nudez natural, sem qualquer conotação sexual e de interação opcional.
Em Diva, não há um corpo propriamente composto, nem a reprodução fiel de uma vulva ou vagina, mas apenas a “menção” a esta anatomia já é suficiente para mobilizar um enorme público à crítica senso-comum do que seria ou não adequado como pauta para a arte contemporânea.
Contudo, não podemos limitar este tratamento apenas à arte contemporânea, mas qualquer tipo de trabalho artístico que se propõe a trazer a sexualidade de forma não erótica como o caso de A Origem do Mundo, do pintor francês Gustave Courbet, pintada em 1866 mas que, mais de um século depois, se depara com casos de censura.
Um tratamento oposto é direcionado a trabalhos como a Olympia de Manet ou A Maja Nua de Goya, ambas construídas com claras intenções eróticas e amplamente aplaudidas nos maiores museus da história naturalizando a visão feminina como exclusivamente sexual, direcionada ao deleite da observação masculina.
A obra Diva, da artista Juliana Notari, também pode ser lida como uma ferida. Uma referência política à situação do Brasil enquanto nação que enfrenta uma pandemia e se vê fragmentada e machucada após um ano de decisões políticas instáveis e insuficientes por parte do governo federal.
O local, a Usina de Arte em Pernambuco, um espaço semelhante à Inhotim, que hoje é dedicado a manifestações de arte contemporânea, ocupa uma terra anteriormente explorada para a plantação de cana de açúcar e ao abastecimento de uma economia capitalista cruel.
O feminino e a terra são explorados pelo capitalismo que tem raíz consolidada no patriarcado. Ver uma vulva nascer tão viva e potente nessa terra, é uma visão que dá esperança e escancara as feridas da história.
A obra foi frequentemente referenciada nas matérias jornalísticas como “vagina gigante”, um uso genérico do termo vagina que demonstra a parcela de desconhecimento em relação ao órgão sexual feminino. Uma em cada quatro mulheres* identifica erroneamente as partes íntimas femininas e o termo vulva é escassamente conhecido por parte do público feminino.
Se o nome do próprio corpo é desconhecido e seu estudo é deixado de lado, como esperar que sejam apropriadas as questões que o envolvem? Os poucos estudos sobre o corpo feminino desenvolvidos até hoje fazem parte de uma intenção social de aniquilar a história do corpo enquanto potência de valorização.
A vulva idealizada pela artista surgindo da terra é uma forma forte de defender a história e a visibilidade de uma das faces do feminino. Ao incomodar e trazer ao debate, seu trabalho está feito e o avanço está no horizonte.
Nota: Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da ArtSoul
Victoria Louise é redatora da ArtSoul formada pela PUC-SP em Arte: História, Crítica e Curadoria e Gestão Cultural
*How well do women know their own bodies? – Pesquisa feita por Intimina e OnePoll em 2020.
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