A arte é um campo de conhecimento aberto, e neste é comum que determinadas produções reflitam sobre as propriedades de outras linguagens, como a literatura, por exemplo. Este é o caso do livro de artista, categoria que possui diversos desdobramentos, e um ponto de convergência: a possibilidade do livro enquanto objeto artístico.
Na história da arte, ciclos temporais nos ajudam a analisar a formação de determinadas linguagens e estilos. No texto de apresentação da exposição “A Century of Artists Books” (Um Século de Livros de Artista) do ano de 1994, o MoMA define a linguagem do livro de artista como moderna, através de um recorte que se inicia com trabalhos dos franceses Henri de Toulouse-Lautrec e Paul Gauguin no século XIX.
Já a exposição Livros de artista da Biblioteca do MAM, apresentada no Museu de Arte Moderna de São Paulo em 2019 com curadoria de Felipe Chaimovich, trouxe uma coleção significativa de livros de artista, valorizando os trabalhos alternativos do cenário nacional. Em texto de apresentação da exposição, o curador cita dois momentos importantes para a história desse tipo de trabalho artístico: as décadas de 1960 e 1970, momento de ampliação dos meios de comunicação e consumo de massa, no qual a produção gráfica se torna um meio de reflexão artística; e a década de 1980, momento no qual a materialidade do livro passa a ser amplamente investigada, e o livro de artista enquanto objeto de arte passa a ser considerado em sua particularidade, não somente por grandes tiragens.
No artigo “Livro de artista: palavra-imagem-objeto”, a pesquisadora Viviane Baschirotto aponta que o artista espanhol Julio Plaza já apresentaria algumas nomeações para este tipo de produção em seu livro “O livro como forma de arte (I)”, sendo algumas destas: “livro ilustrado, poema-livro, livro-poema, livro objeto ou livro-obra, livro conceitual e livro-documento”.
É preciso diferenciar os livros de artista com os livros ilustrados por artistas que são impressos em grandes tiragens por editoras. O livro do artista é concebido pelo artista e, neste processo, mesmo que a obra seja composta por uma relação entre texto e ilustrações, as imagens não necessariamente atuam na representação do texto, como habitualmente. Baschirotto sintetiza essa relação:
“É uma parceria que não se limita a uma ilustração do poema, mas que o torna objeto, que dá forma a palavra escrita”.
Livros de artistas atravessam outras linguagens artísticas em determinadas proposições, como a escultura, por exemplo.
Hilal Sami Hilal explora as propriedades escultóricas de um livro na obra Para o meu amor passar. Composto de cobre e granito, o objeto sofreu um processo de oxidação e corrosão, sendo uma possível alusão à passagem de tempo e degradação da matéria em contraponto à ideia de conservação de uma mensagem, característica intrínseca a um livro. Muitos livros de artista descaracterizam noções básicas do uso de um livro, como o ato de folhear suas páginas. Neste trabalho, o gesto de leitura é substituído por uma interação contemplativa. Ainda que não apresente páginas que poderiam ser manuseadas, este livro possui o código escrito em uma página feita de metal.
Livros como Perturbadoramente Familiar, de Giselle Beiguelman desconstroem a narrativa linear usual de um livro, assim como a forma de interação com este. Composto por um conjunto de postais, uma almofada de carimbo, e um carimbo arranjados em uma caixa de madeira, os materiais foram produzidos a partir de uma investigação da artista acerca de questões familiares e culturais em viagens realizadas pela artista. Com 20 exemplares e 3 provas de artista assinadas, este é um exemplo de que livros de artista nem sempre são feitos em unidade, mas também possuem tiragens limitadas.
Na obra Escolhido por Deus, o artista Sérgio Adriano H. parte da bíblia – talvez o livro mais emblemático da história – para traçar relações entre fé, violência, e comunicação. O artista utiliza os símbolos da forma de um revólver e a própria bíblia para estabelecer essas relações.
Este é um bom exemplo de como o livro de artista não necessariamente precisa ser elaborado pelo artista desde sua primeira fase, mas pode ser um objeto ressignificado através da atuação do artista sobre ele.
Diogo Barros é curador, arte educador e crítico, formado em História da Arte, Crítica e Curadoria pela PUC SP.
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