A 34ª Bienal de São Paulo estava planejada para ser aberta ao público em 2020, mas teve de ser adiada e remodelada em razão da pandemia. Ao longo do período de restrições no setor cultural, essa edição se desenvolveu de forma expandida desde fevereiro do ano passado, se adaptando às condições pandêmicas e ao cenário inevitável da crise sanitária.
No mês de setembro deste ano, a programação da Bienal finalmente culminou em sua exposição principal no conhecido Pavilhão Ciccillo Matarazzo, localizado no Parque Ibirapuera. Nós visitamos a presente edição e trouxemos alguns destaques acerca da curadoria e da experiência da visita.
Após mais de um ano experienciando a vida coletiva através de inúmeras restrições e modos de convívio, foram pensadas novas possibilidades de estarmos juntos. A entrada desta Bienal é marcada por um – quase – vazio de objetos, mas também pela marcante presença de visitantes em constante movimento.
É o caso da instalação sonora Pim-pam, de Roger Bernat e seu grupo FFF, produzida especialmente para a Bienal. A obra conta apenas com um carrinho cheio de fones de ouvido que podem ser utilizados pelo público no espaço vazio da entrada. Nos fones, escutamos uma voz programada repetindo comandos, de forma a parecer aleatória, convidando o ouvinte a se desprender de sua postura usual em uma exposição, com gestos inesperados. Em alguns momentos, a voz sugere interações entre pessoas, como “façam um círculo” ou “passe entre duas pessoas”, em outros, pede que o ouvinte olhe pelas janelas do edifício, por exemplo.
Aqueles que se deixam levar pela experiência têm a chance de iniciar uma visita de modo mais solto. Ali, é possível perder-se de si, para se reencontrar entre as obras que virão ao longo do pavilhão.
A curadoria propõe vários enunciados, ou seja, núcleos de reflexão e diferentes leituras das obras. Um posicionamento muito claro, porém, se apresenta no título: “Faz escuro, mas eu canto”. Em referência ao poema de Thiago de Mello, a sugestão é de uma leitura do presente que reconheça a gravidade do que se vive, entretanto, se acredita na abordagem de outros temas em ordem de sobrevivência.
Há quem viva a escuridão e cante sobre ela; há quem cante apesar dela. É nessa segunda linha que a Bienal se constrói, não alienada diante do desafio, mas percebendo no olhar para outros lados da história, possibilidades e vias de passar pelo momento traumático que nos é imposto.
Após a entrada, o primeiro eixo significativo reúne trabalhos que tratam diretamente da matéria como testemunha do tempo. Encontramos uma rocha de quartzo, que por sua superfície, relembra o incêndio que ocorreu no Museu Nacional no Rio de Janeiro em 2018, ocasião que alterou suas propriedades de ametista para citrino, devido a temperatura a qual foi exposta. Próxima a ela, está o meteorito de Santa Luzia, que foi encontrado na atual cidade de Luziânia (GO) em 1921. Compõe o conjunto também uma ritxòkò, doação de Kaimote Kamayurá, da aldeia Karajá de Hawaló, na Ilha do Bananal, no estado do Tocantins, colaborando para a reconstrução do acervo do Museu Nacional.
No mesmo ambiente, uma extensa parede é ocupada por trabalhos de Carmela Gross, que partem de um longo processo entre diferentes tratamentos de imagens captadas de um vulcão, agora fragmentadas nessa exibição.
As diferentes mídias presentes neste eixo têm em comum a relação com o tempo, enquanto atestam o passado e denunciam o presente. Comprovando, ainda, que sempre há uma resistência natural e humana a forças destrutivas.
O tom esperançoso é presente e se manifesta dentro desse estudo do passado e de como diversas sociedades superaram as situações de destruição e seguiram, não intactas, mas transformadas. É o caso de My Country is the most beautiful of all, em que a artista sérvia Ana Adamović apresenta uma foto de um grupo de crianças cantando sobre a paisagem de primavera e do inverno, a glória e os heróis em tom patriótico, na década de 80. Ao lado, uma instalação de vídeo em que as mesmas pessoas, agora adultas, cantam a mesma música na mesma cidade, 24 anos depois. Neste momento, porém, o país havia passado por uma guerra resultando em 130 mil mortes. A música, ainda na letra original, evoca outras memórias e significados. Segundo o verbete da instituição, na obra de Adamovic, “há algo da história que se repete, mas que nesse retorno revela também diferenças”.
As ressignificações são a chave para a leitura desta Bienal. Intencionalmente pouco conduzida a uma interpretação única, é a partir das ressignificações do passado, que a curadoria propõe um leque interpretativo para o presente. Isso se manifesta não só na escolha de artistas anteriores à década de 1990, mas na correspondência entre objetos, trajetórias e obras de arte, que evocam no estatuto do documento, formas de endereçar a complexidade da história.
O poder social e político da imagem pode ser considerado uma das questões mais pulsantes desta edição da Bienal. Os retratos de Frederick Douglass, 1841-1895, é o conjunto de imagens que encontramos em destaque em uma das pontas do pavilhão. Douglass foi um líder abolicionista negro norte-americano que compreendeu em sua época a importância da circulação de imagens de pessoas negras em todos os tipos de mídias, se tornando a pessoa mais fotografada nos Estados Unidos do século XIX.
Em uma linha próxima, no mesmo andar encontramos uma instalação com fotografias de Alfredo Jaar (Chile). Em “A Hundred Times Nguyen” (Cem vezes Nguyen), de 1994, Jaar apresenta retratos em sequência de uma garota vietnamita que ele encontrou em um centro de detenção de refugiados em Hong Kong. O artista também pensou a circulação massiva dessas imagens como uma forma de denunciar o que grupos de refugiados sofrem.
Nessa linha do diálogo, os enunciados são vários e as paredes de vidro montadas em torno dos eixos, são como peles que coexistem entre si, compartimentando grupos de narrativas, mas a transparência do material de vidro na expografia expande os encontros com o externo de forma literal e figurativa.
É interessante perceber como obras de alguns artistas aparecem em diversos momentos da exposição, sendo apresentadas em diferentes diálogos com outros artistas e eixos curatoriais. É o caso das obras de Noa Eshkol, artista palestina que, na década de 1950, desenvolveu um método de estudo dos movimentos do corpo, e reaparece em vários eixos da exposição.
Uma característica marcante da 34ª Bienal de São Paulo foi a curadoria compartilhada. Houve, segundo Jacopo Crivelli, curador geral, um processo horizontal entre os 5 curadores, mas não só entre eles. Além disso, a rede da programação desta edição se expande com exposições montadas em mais de 15 museus, espaços culturais e unidades do SESC, a exemplo do MuBE, com individual de Juraci Dórea; o MAM com curadoria de Jaider Esbell ou o Museu Afro Brasil com individual de Frida Orupabo.
Os artistas também tiveram espaço colaborativo, como Jaider Esbell, que defendeu maior presença indígena no escopo da edição, além de fazer a curadoria da exposição Moquém_Surarî: arte indígena contemporânea no Museu de Arte Moderna de São Paulo e participar da programação elaborada pela Bienal em parceria com o MAM e a Galeria Jaider Esbell. O artista, curador e líder encantou e nos deixou na semana passada. O mundo da arte agora sofre o luto de um dos mais importantes agentes da arte indígena dos últimos tempos. Seu impacto no circuito artístico nacional é visível nesta Bienal e seu legado sem dúvida irá reverberar nas próximas décadas.
“É a percepção de estar numa Bienal não mais como um componente exótico, mas com consciência política, inclusive, de estar participando de um dos maiores palcos da arte do mundo, e deixando marcada a nossa diversidade.” – Jaider Esbell em entrevista para Folha
A produção indígena contemporânea tem destaque em “Faz escuro, mas eu canto”, e no último piso do pavilhão encontramos diálogos interessantes, como ocorre entre Lygia Pape e Daiara Tukano, por exemplo. Entre as décadas de 1980 e 1990, Pape refletiu em alguns trabalhos a ausência da cultura indígena tupinambá em circuitos contemporâneos, tendo essa cultura sido muito registrada e explorada por colonizadores.
Já Tukano tem uma forte presença no pavilhão com obras reunindo diferentes materiais, como pinturas e mantos de penas entrelaçadas. É destaque neste andar a obra “Kahtiri Eoro, Espelho da Vida”, uma versão da artista dos famosos Mantos Tupinambá. A produção de Tukano toca na presença da produção indígena em espaços como a própria bienal – essa que muitas vezes foge às nossas classificações de arte, já que carregam outros significados e propostas.
Apesar do diálogo construído entre as exposições, há uma demanda por diversidade que extrapole os limites da lista de artistas, para uma inclusão também na diretoria e no próprio time curatorial.
Essa edição foi aberta em um momento delicado da situação política, social e sanitária no país. Em meio a emboscada de polarização do Brasil, a curadoria foi um tanto ousada em não encerrar uma opinião e defender uma só bandeira, mas pluralizar as discussões e incentivar a leitura da contemporaneidade com a complexidade que lhe é devida. Ainda assim, são urgentes as revisões de representatividade e inclusão como aponta a crítica cultural Pollyana Quintana:
“Engajar-se epistemologicamente com outros repertórios culturais exige assumi-los também na estrutura das instituições, e isso implica compor uma equipe curatorial mais diversa e plural, algo que a Fundação Bienal ainda tarda em compreender.”
SERVIÇO
Exposição “Faz escuro mas eu canto”
34ª Bienal de São Paulo
4 Set — 5 Dez 2021
terça, quarta, sexta e domingo, 10h – 19h (última entrada às 18h30)
quinta e sábado, 10h – 21h (última entrada às 20h30)
entrada gratuita
Diogo Barros é curador, arte educador e crítico, formado em História da Arte, Crítica e Curadoria pela PUC SP.
Victoria Louise é crítica e produtora cultural, formada em Crítica e Curadoria e Gestão Cultural pela PUC-SP.
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