Relacionados tradicionalmente ao espaço da casa e ao feminino, por muito tempo, os trabalhos têxteis, estiveram identificados de forma estrita ao artesanato, e foram desvalorizados em contextos da arte. Podemos observar, no entanto, o interesse recente de diversas artistas contemporâneas, por novos modos de aproximação destas técnicas, como revelam a produção de nomes como Sheila Hicks, Carolina Caycedo, Cecile Dachary, Rosana Paulino e Sônia Gomes. Conversamos com duas jovens artistas independentes sobre os interesses que pautam suas experimentações em arte têxtil. Saiba mais sobre as pesquisas que desenvolvem, e conheça o processo criativo das artistas visuais Samantha Canovas e Catharine Rodrigues.
A produção da artista visual Samantha Canovas parte de indagações sobre a materialidade do têxtil e articula múltiplos processos criativos em torno deste fazer. Recorre também à repetição de procedimentos, investigando possibilidades de tramas e tecidos. Uma prática mobilizada em “dobrar, rasgar, puir, lixar, de desfazer mesmo, pegar esses fiapos e transformar eles em um novelo. Tentar entender todo o caminho que o tecido leva até ser um tecido. Qual é a manufatura dele”. Elegendo a madeira e a lona crua, seus primeiros trabalhos procuravam observar processos de transformação.
A artista esclarece o percurso que a aproximou desses materiais: “eu fui da pintura para a lona e a madeira, pensando a pintura como estrutura, como objeto. Tentar através dessa materialidade um ganho do espaço. Foi isso que me levou, de fato, a trabalhar com o tecido.”
A proximidade com o fazer de Penélope é outro aspecto importante dos procedimentos em arte têxtil que ela propõe. A personagem da obra clássica de Homero, ao aguardar o retorno de Ulisses, a cada noite, desfaz silenciosamente a trama tecida no dia anterior, de modo que seu trabalho nunca se conclua. Ao comentar seu processo de criação, fala da importância da lentidão e de uma dimensão artesanal em sua produção: “Entender o tempo da fatura das coisas. (…) Isso é bem importante para o meu trabalho. De fato, demorar a concretizar (…). Entender que algumas coisas precisam de um tempo próprio para se fazer, e não forçar esse tempo.” E complementa: “vivendo nessa quarentena, é como se o mundo estivesse requerendo da gente esse tempo, como se a gente estivesse obrigado a ficar parado por causa disso, que é uma coisa que eu sempre busquei para o meu trabalho.”
A partir de 2017, depois de uma residência na Islândia, passa a compreender sua produção como têxtil e expande seus interesses experimentando outros materiais, além da lona crua. Segundo ela, um momento marcado por uma ampliação importante de seu “vocabulário dentro dessa produção”. Sobre esse período comenta: “Lá eu comecei a ter minhas primeiras experiências com máquina de costura, de testar as fragilidades e as forças do tecido.” Durante a residência, produz uma jaqueta, a partir de materiais encontrados, feita de algas marinhas e costurada com linhas de pesca, obra que discute a “questão da sustentabilidade, pensando em materiais que não fossem gerar resto”. Seu trabalho mais recente, o Projeto 366, também revela preocupações semelhantes, ao estabelecer o uso de uma única roupa, costurada pela própria artista, ao longo de um ano. A proposta cujo registro e documentação acontece no Instagram, parte de algumas perguntas disparadoras: “O que é este pano? Qual é o tecido mais adequado para viver minha vida por 366 dias? (…) Ele é um trabalho permeado por vida. De entender o que esse material vai passar. O que eu estou passando também, enquanto eu estou vivendo com ele.” Citando como referência a produção têxtil de artistas como a norte-americana Sheila Hicks, abrasileira Sônia Gomes, e as one year performances do artista Tehching Hsieh, ela também fala da influência da literatura em sua pesquisa. Sobre seu processo em arte têxtil esclarece: “O que me leva a produzir mesmo é uma inquietação, uma vontade de não ficar parada. De dizer alguma coisa e de sentir que há algo a ser dito.”
A trajetória da artista visual Catharine Rodrigues percorre diferentes linguagens como pintura, escultura, cerâmica, objetos sonoros, fotografia e design gráfico. Um eixo importante de sua produção, se direciona a investigar as diversas formas de “opressão da mulher ao longo da história”, articulando sua pesquisa em torno deste campo de discussões, segundo ela, “mais do que a uma linguagem específica”. Sua aproximação das técnicas de bordado, propõe modos de reapropriação, atribuindo outros sentidos a este fazer, historicamente vinculado ao espaço doméstico, da casa e do feminino, e promovendo debates, a partir desta ação. A artista visual pontua que a potência deste suporte, em seu processo de pesquisa, se relaciona à possibilidade de “questionamento sobre os lugares aos quais a mulher está sujeita e as diversas possibilidades de ocupá-los”.
Sobre seu processo de pesquisa em arte têxtil, marcado por este recorte de interesses, comenta: “Meu primeiro contato com as scold’s bridles foi através do livro Mulheres e a Caça às Bruxas, de Silvia Federici, no qual ela apresenta esses instrumentos de tortura sádica utilizados para silenciar as mulheres que subvertessem o sistema patriarcal, as consideradas bruxas. E foi observando em pleno século XXI que grupos religiosos ainda se utilizam de artifícios absurdos para silenciar as mulheres que considerei o assunto muito atual e digno de debate.” Sua investigação, que parte dos contextos relatados por Silvia Federici, produz uma interpretação visual destes instrumentos de censura e silenciamento, utilizando desenho e bordado como suporte. Ela cita o trabalho da artista visual Rosana Paulino como referência para sua aproximação desta técnica, e para o debate que propõe em torno das scold’s bridles: “pela possibilidade de tratar questões como a opressão de gênero através desse suporte, tradicionalmente relacionado com o fazer feminino.” Revela que sua prática buscou, “desenvolver uma pesquisa que fugisse um pouco do lugar comum em que se encontram muitas das obras relacionadas a essa técnica”. Menciona a influência da artista contemporânea inglesa Tracey Emin, que propõem, em seus trabalhos, discussões também identificadas ao movimento feminista.
Ainda a respeito de questões e interesses que marcam sua produção recente, comenta: “Outro assunto bastante presente em minhas pesquisas, sobretudo neste momento, são as máscaras e seus diversos usos (como adereço carnavalesco, objeto de tortura ou fetiche, disfarce, proteção, etc)”. Sobre seu processo de criação, esclarece: “Optei por não seguir o caminho da ultra-especialização em uma determinada técnica, mas em descobrir e explorar diversos meios.” A diversidade de linguagens, também representa o interesse da artista visual em experimentar distintos modos de comunicação.
Anna Luísa Veliago Costa é Mestre pelo Programa de Pós-graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo, é graduada em História pela mesma universidade, com intercâmbio acadêmico na Universidade Sorbonne-Paris IV.
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2 Comments
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Interessante demais essa reportagem.