Quando uma pessoa inicia sua formação artística, um dos principais livros aos quais é introduzida é “A História da Arte”, escrito por E. H. Gombrich e considerado por muitos como “a Bíblia da História da Arte”. O livro, publicado pela primeira vez em 1950, foi relançado em diversas edições e línguas ao longo dos anos. O curioso é que tal publicação goza de tanto prestígio e, no entanto, não conta com nenhuma artista mulher em suas mais de quinhentas páginas, mesmo após tantos anos e oportunidades de revisão. Por que isso acontece? Não existiram grandes artistas mulheres na história? A compreensão desse fenômeno exige a análise de uma complexidade de fatores e circunstâncias.
Assim como a ciência, a história da arte trata-se de uma disciplina onde teorias são propostas, podendo vir a ser largamente aceitas ou não. Porém, diferentemente da ciência, onde uma teoria pode ser refutada e cair em desuso mesmo após décadas de aceitação, na história da arte existe uma rigidez muito maior no que se refere a posição dos cânones. Historiadores da arte, críticos, pesquisadores podem olhar para o passado e acrescentar novas camadas de compreensão e desdobramentos às teorias instituídas, mas muito dificilmente será possível alterar algo que já foi estabelecido.
Para compreender o complexo arranjo que constitui a história da arte, seus movimentos e conceitos, é preciso que se tenha em vista também o fato de que esse sistema e sua historiografia pertencem ao mundo comum e estão submetidos às mesmas leis que regem a sociedade. Ou seja, uma vez que vivemos em uma sociedade patriarcal, capitalista, eurocêntrica, os mesmos preceitos se aplicam à construção desse universo artístico.
Nesse sentido, o mercado da arte é uma peça fundamental nesse complexo jogo de construção de significados. Assim como o é o gênero, a etnia e a nacionalidade daqueles que atuam no campo. Para que um artista chegue a galgar uma posição de renome na história da arte, é preciso que uma série de fatores contribua para esse fim. Não se trata apenas da qualidade da obra, mas da aceitação e difusão dessa obra pelo meio no qual ela existe.
Ao longo de muitos séculos, mulheres não eram consideradas como capazes de criar algo realmente significativo e autoral. Acreditava-se que a formação artística de uma mulher servia unicamente para sua educação a fim de conquistar uma boa posição na sociedade, ou seja, um bom casamento.
Uma das grandes artistas mulheres a qual a história da arte não garantiu o devido lugar foi Hilma af Klint (Karlberg Palace, Suécia, 1862 – 1944). Nascida em uma família sueca de tradição naval, Klint teve acesso a uma educação extensa em matemática, astronomia, desenho e tantos outros conhecimentos desde muito jovem, desenvolvendo uma qualidade impressionante de obras naturalistas. Fez parte das primeiras gerações de mulheres as quais foi permitido ingressar na Real Academia de Belas Artes de Estocolmo. Ao final de sua formação, Klint já produzia retratos e paisagens por encomenda, podendo garantir o seu próprio sustento.
Nesse momento, na virada do século XIX para o século XX, grandes descobertas científicas e tecnológicas estavam em marcha: o raio X, as ondas de rádio, o interior do átomo, a teoria da relatividade e diversas formas de se compreender o mundo a partir de aspectos invisíveis ao olho humano. Ao mesmo tempo, a teosofia, o espiritismo e a teologia ganhavam crescente espaço na sociedade, também inclinando o sujeito a essa ideia de que mundos invisíveis nos cercam. Tais questões alteraram os paradigmas vigentes, influenciando também as obras dos artistas que viviam esse momento histórico. Até então, a arte preocupava-se em tentar retratar o mundo da forma mais realista possível, em retratar o mundo como o vemos. A partir dessas novas concepções, compreendeu-se que, se o artista quisesse retratar o mundo como ele realmente é, deveria retratar o invisível que o constitui e, para isso, precisaria inventar uma nova linguagem visual.
Surgia o abstracionismo na pintura. Kandinsky, Malevich, Mondrian, ganharam reconhecimento no meio, influenciando diversas gerações de artistas e movimentos que viriam a surgir depois. Durante muito tempo acreditava-se que a primeira pintura abstrata da história havia sido produzida por Kandinsky em 1911. O próprio artista reivindicava tal feito em uma carta escrita em 1936 para o galerista J. B. Neumann, dizendo: “Sem dúvida, é a primeira pintura abstrata do mundo (…) trata-se, em outras palavras, de um quadro histórico”.
A verdade é que anos antes, em 1906, Hilma af Klint já se dedicava a produção de uma extensa série de obras abstratas. Por que, então, a história da arte levou tanto tempo para reconhecer o pioneirismo de Hilma af Klint? Os processos que levaram ambos Kandinsky e Klint a conceber suas linguagens, apesar de similares, foram positivamente distintos e talvez essa seja uma das chaves para compreendermos os rumos que a história tomou.
Kandinsky partia do mundo dos sentidos, do mundo visível, decodificando-o e simplificando-o ao ponto de conceber sua obra sinestésica em cores, formas e traços abstratos. Já Klint, fazia o caminho inverso: partia do interior oculto das coisas mesmas, buscava compreender e sistematizar em códigos visuais a realidade que existe além do visível, compreender quem nós somos do ponto de vista cósmico.
Apesar de tais ideias soarem possivelmente esotéricas e, de fato, terem surgido a partir de pulsões espiritualistas da artista, existem diversas teorias científicas que embasam tal noção. Sabemos, hoje, por exemplo, que no intervalo de todas as frequências de ondas eletromagnéticas existentes, entre as ondas de rádio e os raios gama, os sentidos humanos são capazes de apreender apenas uma pequena faixa visível e audível.
Tais inclinações espiritualistas da artista, em associação com seu estilo de vida recluso, são alguns dos motivos pelos quais sua obra não foi reconhecida em vida. Além destes, há outros fatores que contribuíram para a resistência da história da arte em atribuir à Klint a devida importância. Por exemplo, o MoMa (Museum of Modern Art of New York), instituição de referência no que tange a pesquisa e exibição dos movimentos de vanguarda da virada do século XIX para o século XX, promoveu em 2012 a exposição “Inventing Abstraction 1910–1925” (Inventando a abstração 1910–1925, em tradução livre), na qual deixou de fora a obra da artista. Ao ser indagada sobre o porquê de não haver incluído a obra de Klint, a instituição afirmou que o que diferencia a obra de Klint dos outros artistas apresentados na exposição, é o fato de a artista não ter exibido o seu trabalho em vida. Hoje, sabe-se que essa não é a verdade, Hilma af Klint teve ao menos uma exposição em vida que se deu em Londres, em 1928.
O argumento de que o artista deve apresentar seu trabalho em vida para que se possa produzir debate acerca do mesmo e incluí-lo na historiografia da arte, também pode ser questionado pelo fato de que Klint deixou mais de 25 mil páginas de escritos documentando extensivamente seu processo criativo ao longo de décadas. Nestes cadernos encontram-se desde esboços para as obras, até indicações de como estas deveriam ser exibidas, permitindo uma compreensão profunda da poética concebida pela artista. Além disso, Hilma af Klint deixou preservadas e organizadas sistematicamente mais de 1.300 obras entre desenhos e pinturas.
Por que, então, negar a participação que cabe à Klint na história? A resposta pode envolver também fatores mercadológicos, pois, ao deixar sua obra integralmente como herança para seu sobrinho, Klint impôs a condição de que nenhuma pintura poderia ser vendida. A impossibilidade de incluir a obra de um artista no mercado da arte, faz com que as grandes instituições que movem esse sistema e que, como vimos antes, influenciam na validação dos artistas, resistam em integrá-lo ao meio, tal qual o caso de Hilma af Klint. Apenas no ano de 1986, quando o Los Angeles County Museum of Art realizou a exposição The Spiritual in Art: Abstract Painting 1890-1985 (O Espiritual na Arte: Pintura Abstrata 1890-1985, em tradução livre), o trabalho de Hilma af Klint foi finalmente conhecido pelo grande público. Na ocasião, suas pinturas foram expostas ao lado das de Mondrian, Kandinsky e Malevich, permitindo que a revisão histórica do pioneirismo de Klint passasse a ser debatida.
Até hoje, sua poética carregada de misticismo permanece misteriosa e instigante. Suas obras abrem as portas para reflexões e debates riquíssimos acerca da espiritualidade, da ciência, do papel da arte na vida do sujeito, entre tantos outros temas. Mas, para que tais debates possam acontecer, é preciso que a história permita que Klint ocupe o lugar que merece. E, assim como ela, tantas outras artistas mulheres que contribuíram e contribuem enormemente para nossa época precisam ser vistas e respeitadas. Tal movimento deve ocorrer de maneira que o campo da arte, como um todo, faça uma revisão real de suas práticas de inclusão de poéticas não hegemônicas. Se na arte não houver espaço para sensibilidades outras, onde haverá?
Luísa Prestes, formada em artes visuais pela UFRGS, é artista, pesquisadora e arte-educadora. Participou de residências, ações, performances e exposições no Brasil e no exterior.
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