No início de março, a Pinacoteca de São Paulo inaugurou uma das exposições mais aguardadas para o ano de 2024, a panorâmica “Lygia Clark: projeto para um planeta”. Ocupando 7 galerias do edifício histórico da Luz, a retrospectiva apresenta mais de 30 anos de uma produção que transformou a maneira de se fazer arte no Brasil e no mundo. Com curadoria de Ana Maria Maia e Pollyana Quintella, a mostra provoca o espectador a questionar os papéis tradicionais do artista e do público através das obras.
“O que acontece quando a arte ultrapassa a moldura e se mistura com a vida?”, esta é uma das perguntas lançadas pela equipe educativa do museu sobre o trabalho de Lygia, que no final da década de 1950 já procurava ampliar as linguagens artísticas existentes. Antes de elaborar esta pesquisa, ela passou três anos longe do Brasil: entre 1950 e 1953, morou na França para estudar pintura com professores renomados, como Fernand Léger e Isaac Dobrinsky. Nessa época, a mineira começou a produzir composições abstratas que, aos poucos, fragmentaram as noções de espaço do plano pictórico.
De volta ao Brasil, em 1954, Lygia Clark se juntou ao grupo de artistas que formou o Grupo Frente, no Rio de Janeiro, liderado por Ivan Serpa. Em contraposição ao movimento concretista que surgiu em São Paulo com o Grupo Ruptura, os cariocas defendiam uma arte mais subjetiva e independente da ciência ou da moral. Foi a partir daí que, no final dos anos de 1950, a artista passou a desenvolver o que chamou de “Superfícies Moduladas” e “Planos em superfície modulada”, séries de pinturas que exploram uma “linha-espaço”, dispostas na primeira sala da exposição.
Em 1959, com a publicação do Manifesto neoconcreto, Lygia começou a se aproximar cada vez mais da tridimensionalidade. Primeiro, produziu os “Contra relevos” (1959), com quadrados diagonais feitos de planos de madeira sobrepostos, que nos remetem a envelopes ou origamis. Em seguida, utilizando metal, ela fez os “Casulos” (1959), como uma espécie de origami manipulável. Dessas peças, foi surgindo uma das séries mais emblemáticas da artista, os “Bichos”, iniciada em 1960. Com o tempo, eles foram ganhando formatos e tamanhos diversos – redondos, pontudos, pequenos, grandes e médios. Sem frente ou costas específicas para serem olhados, os Bichos assinalam uma obra aberta, que depende do referencial do público, não de si mesma.
Ao incluir a participação do espectador, que antes ocupava uma posição somente contemplativa em relação às esculturas, Lygia altera o próprio sentido de sua criação, que passa a “exigir” um manuseio. Para a mostra na Pinacoteca, foram produzidas algumas réplicas dos Bichos para que o público possa tocar, interagir e manipular, seguindo a finalidade primeira da artista – sua ativação.
No ano de 1963, Lygia deu mais um passo importante para a desmistificação do trabalho artístico no Brasil. Em “Caminhando”, ela utiliza a fita de Moebius (um pedaço estreito de papel, torcido e com suas extremidades coladas) para contestar a ideia comum do artista como “gênio criador”. Ao furar a fita com uma tesoura e seguir recortando o papel, o material vai se tornando cada vez mais fino e alongado, até não poder ser cortado mais. Nessa proposta, qualquer pessoa pode reproduzir a obra, que não requer materiais de difícil acesso nem espaços institucionais – o ato é a própria arte.
Esta experimentação mais sensível aparece exposta na Pinacoteca junto a outros trabalhos que também colaboraram para a superação do objeto artístico tradicional, como os “Trepantes” e as “Obras Moles”. Nestas produções, a maleabilidade do aço, do bronze e da borracha parecem desdobramentos da fita de Moebius, que brinca com os binarismos de dentro-fora.
“Lygia Clark: projeto para um planeta” não segue uma ordem cronológica, assim como as obras da artista não seguem uma linearidade. Depois de conhecer a radicalidade dos Bichos, a experimentação construtiva do Grupo Frente e a democratização do trabalho poético com a fita de Moebius, o visitante pode voltar às décadas de 1940 e 1950 para entender a relação de Lygia com a arquitetura.
Influenciada pelo paisagista Roberto Burle Marx, um de seus primeiros professores, e pelos princípios do movimento Neoconcreto, a artista ressaltou em suas obras a dimensão subjetiva e política dos espaços. Produziu maquetes e até chegou a projetar casas, embora nunca as tenha tirado do papel. O trabalho “Maquete para interior nº 3” (1955) foi remontado em grande escala especialmente para a Pinacoteca.
O corpo sempre esteve presente nas obras e estudos de Lygia, mas foi a partir da metade da década de 1960 que ela aprofundou as discussões relacionadas a ele. Em meio a um cenário de violência, repressão e cerceamento das liberdades individuais causado pela Ditadura Militar, a artista entendeu que seu trabalho deveria funcionar como uma ferramenta micropolítica, por meio da qual as pessoas poderiam se expressar de forma sensível e atravessar aquele contexto.
Rompendo totalmente com os modelos tradicionais da arte, Lygia passou a propor experimentações individuais e coletivas. Criou os Objetos Relacionais (a partir de 1966), concebidos para provocar sensações simples de autopercepção, e a Roupa-corpo-roupa (1967-1968), que conecta a descoberta de si mesmo às relações sociais e afetivas. Na Pinacoteca, réplicas destas peças também podem ser manipuladas e experimentadas pelo público.
Depois de passar anos atuando com a dimensão coletiva do corpo e das subjetividades, Lygia inovou seu trabalho novamente. A partir de 1976, passou a fazer apenas atendimentos individuais em seu apartamento em Copacabana, experiência que chamou de “Estruturação do self”. O filme “Memória do Corpo” (1979), de Mário Carneiro, registra uma seção deste método, que era entendido como artístico-terapêutico.
Na última sala da exposição, intitulada “Corpo coletivo”, são apresentados documentos históricos de algumas das vivências realizadas por Lygia de 1960 até 1970, período em que viveu entre o Brasil e a França. Nesta época, com a efervescência dos movimentos estudantis, seu interesse por proposições coletivas só cresceu. No ano de 1970, foi convidada para dar aulas na Sorbonne, em Paris, onde desenvolveu uma série de propostas com seus alunos, que podem ser assistidas na mostra.
Propondo novas relações entre corpo e objeto, Lygia tornou-se uma das artistas mais relevantes da arte contemporânea e de todo o século XX. Em cartaz até 4 de agosto, a mostra é imperdível para apreciadores de arte contemporânea.
Serviço
Exposição: “Lygia Clark: Projeto para um planeta”
Curadoria: Ana Maria Maia e Pollyana Quintella
Local: Pinacoteca Luz – Praça da Luz, n° 2 – Luz, São Paulo
Visitação: 02 de março a 04 de agosto de 2024
Funcionamento: quarta a segunda, das 10h às 18h. Quintas-feiras com horário estendido B3 na Pina Luz, das 10h às 20h (gratuito a partir das 18h).
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