Mediado e representado pelas linguagens tradicionais, como a pintura e a escultura, ou base constituinte de uma ação, como a performance, o corpo sempre esteve presente na arte. A seguir, obras selecionadas na plataforma Artsoul tornam-se pontos de reflexão sobre como o corpo se apresenta na arte contemporânea em diferentes linguagens e poéticas. Essas e outras obras estão presentes na seleção Corpo.
A inscrição do corpo na natureza é uma das formas de expressão humana mais antigas. O registro do corpo e a comprovação de sua existência – seja pela palma da mão, por desenhos de seres vivos, ou mesmo de rituais -, vem sendo realizado desde as histórias mais remotas e reelaborado na contemporaneidade. A fotografia de Rodrigo Braga pensa esses registros através da fotografia, constatando as dimensões do humano diante de elementos naturais como pedras e folhagens secas. Nessa relação de elementos tão comuns, sua fotografia se torna atemporal.
Rodrigo Braga. Ponto Zero #04, 2019.
A humanidade também deixa rastros especialmente através da manipulação de pigmentos. A obra abaixo de Carla Chaim emprega a gestualidade das mãos para compor uma sequência de pinturas. O conjunto de “tapas” é formado por indícios de uma ação rápida, no qual cada parte colabora em um plano sequencial de gestos. Essa obra lembra como o papel do corpo na pintura pode ser mais intuitivo e expressivo, em contramão de uma racionalidade precisa.
Carla Chaim. Tapas, 2022.
Na escultura, a figura humana já passou por todo tipo de representação, das mais naturalistas às mais abstratas. O período do Renascimento elevou uma visão sobre o corpo que resultou em representações científicas e idealizadas, até que suas formas fossem desfeitas, quebradas e reformuladas nos mais diversos modernismos do início do século XX.
Na contemporaneidade, o corpo já não é mais esculpido por metodologias rígidas ou manifestos, mas encontra uma infinidade de processos de materialização. A obra de Veralu, por exemplo, parece estar na encruzilhada de possibilidades do corpo na escultura. Esculpida em bronze, sua obra configura uma forma humana suave, em movimento fluido e contínuo. Através da materialidade da obra, a artista revisita as tradições da escultura, mas reconfigura essa matéria para apresentar um corpo livre.
Entre muitas conquistas modernistas, o corpo na arte herdou os fragmentos, a lembrar do cubismo e do surrealismo, por exemplo. Através de novos olhares para a natureza e tudo que a cerca, foi possível que na arte se formulassem novas representações do corpo. A partir das vanguardas o corpo passou a ser representado não apenas pela unidade, mas pelos fragmentos.
Maria Cherman. Para sempre, 2019.
Na obra de Maria Cherman, por exemplo, poucas linhas e um preenchimento sutil do espaço são suficientes para transmitir a ideia de um corpo – que não só existe, mas também se relaciona – com ele mesmo ou com outro corpo. A organicidade de suas formas podem remeter a membros como as pernas, ou um corpo inteiro contorcido e apresentado apenas em partes. Já a silhueta capturada na fotografia de Andressa Cantergiani interage com outros elementos, as penas negras, para formar uma composição quase abstrata. A referência do corpo ainda permanece na imagem, de modo a apresentá-lo não como único protagonista, mas como elemento definidor da imagem de igual importância com as penas, gerando um contraste intenso.
Andressa Cantergiani. Raven, 2019.
A experimentação, característica própria da arte contemporânea, junto ao cruzamento de linguagens, proporcionou a artistas que refletissem o corpo para além de objeto representativo. Através da performance, da fotografia e da instalação, Celina Portella cria uma obra que torna essas linguagens inseparáveis em prol de uma poética única. Jogando com o equilíbrio do próprio corpo, a artista une os elementos internos da imagem com os externos da instalação, criando uma ligação direta. É como se sua ação nas fotografias sustentasse toda a dinâmica espacial do projeto, extrapolando os limites da moldura.
Celina Portella. Uma mão lava a outra/3 – da série Puxa, 2016.
A fotografia também tem se mostrado uma linguagem de difusão de novas narrativas. Através dela, corpos que por muito tempo foram silenciados, podem produzir novas imagens e imaginários. Artistas negros, por exemplo, têm resgatado ancestralidades através de suas produções.
Keila Sankofa trabalha a presença do corpo negro na fotografia contemporânea – na obra acima, especificamente a mulher negra. A dinâmica entre o espelho e a câmera, da figura que segura o objeto que reflete e o grupo de mulheres que é revelado na imagem, elabora a presença do corpo na fotografia em diferentes instâncias. A imagem carrega uma relação de afetividade e cuidado em uma ambientação natural, inserindo esse corpo coletivo em um espaço de liberdade.
O corpo produz e é produzido na arte através da performatividade e da imagem. Suas relações adquirem novas relevâncias de acordo com a atualização de suas preocupações na sociedade e na sua coragem de experimentar dentro da plasticidade artística. Estes são apenas alguns dos pontos de convergência entre o corpo e a arte, mas não pretendem definir uma relação de longa data, sem previsão de expiração.
Diogo Barros é curador, arte educador e crítico, formado em História da Arte, Crítica e Curadoria pela PUC SP.